Salvos por graça, destinados às boas obras (Ef 2,1-10)

Por: - 17 de outubro de 2023

Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)

Quando se trata da relação entre salvação pela graça, fé e boas obras, a história da Igreja está repleta de controvérsias fervorosas. Efésios 2,1-10 sempre teve um grande potencial polêmico nesse contexto. No entanto, hoje em dia, essa temática parece encontrar espaços mais pacíficos para discussão. Entre os cristãos, há um consenso crescente de que a graça de Deus é o único caminho para a salvação. Avança-se também no entendimento de que o homem redimido deve manifestar essa salvação em uma vida ativa de boas obras.

Contexto

A carta aos Efésios canta a misericórdia de Deus pela sua obra de salvação. Paulo nos insere em sua contemplação da graça divina, que nos resgata da morte espiritual e nos faz viver em Cristo. Ele nos mostra como Deus age na história humana, transformando o pecado em perdão, a alienação em comunhão e a desgraça em bênção. 

O apóstolo divide a história em dois tempos: o passado de pecado e morte, no qual todos os homens estavam mergulhados, inclusive o povo da aliança (vv. 1-3); e o “agora” de salvação e vida, no qual Deus nos faz renascer, judeus e gentios, em Jesus (vv. 4-10). Essa contraposição serve para destacar a gratuidade da salvação oferecida por Deus. E nós, uma vez inseridos nesse grande plano salvífico, somos chamados a colaborar com ele pela prática das boas obras. 

O tema da salvação pela graça mediante a fé é semelhante ao que encontramos em Romanos, onde Paulo usa os mesmos argumentos da situação de morte pelo pecado vivida pelo homem, em contraste com a salvífica iniciativa gratuita de Deus. Porém, há uma diferença importante: em Efésios, ao contrário de Romanos (e Gálatas), não se usa o termo “justificação” ou “manifestação da justiça de Deus”. Além disso, Efésios vai mais longe quando fala do tema da “vida”, ao afirmar que não só ressuscitamos com Cristo, mas que Deus nos fez “sentar” junto a ele na glória.

O texto de Efésios 2,1-10 tem características da literatura apocalíptica e é influenciado pela tradição judaica e pelo helenismo da época. A apocalíptica se manifesta pela linguagem exagerada e dramática, com denúncias e condenações. Paulo a usa com o objetivo de causar um impacto imediato nos seus leitores, para manter a identidade das pequenas comunidades cristãs imersas em um ambiente pagão e também ameaçadas internamente pelos grupos cristãos judaizantes que combatiam o apostolado paulino. 

Além disso, a perícope desenvolve e aprofunda o tema já exposto na terceira bênção (1,7-8) do hino inicial, onde temos a libertação (resgate), por meio da graça do perdão derramado sobre “nós”, a humanidade inteira. Dessa vez, Paulo nos coloca diante de duas opções: ou aceitamos a salvação de Deus ou nos submetemos ao poder do Diabo, onde viver a influência maligna significa ceder às paixões da nossa carne. Por estar em uma condição profunda de corrupção, o homem só poderia libertar-se mediante uma ação direta de Deus, que nos veio por Jesus Cristo.


Comentário

E vós estáveis mortos por causa de vossas transgressões e pecados nos quais andastes outrora, seguindo o Mentor deste mundo, seguindo o Chefe das potências dos ares, o espírito que atualmente está agindo nos rebeldes. Entre eles vivemos todos nós outrora, nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos. E, como os demais, éramos, por natureza, destinados à ira.” (vv. 1-3)

Na alternância entre “vós” e “nós”, vemos que o discurso é direcionado para diferentes grupos. Quando Paulo usa “vós”, como em 2,1-2.5b.8, ele está se referindo aos gentios, ou seja, àqueles que não pertenciam ao povo judeu. Já o “nós” tem duplo sentido: em 2,3 significa só os judeus, e em 2,4-5.6-7.9-10, abrange todos os cristãos, sejam eles de origem judaica ou gentílica. Os dois grupos possuem um passado marcado pela morte em consequência do pecado, e ambos, igualmente, são objetos da misericórdia de Deus e destinatários da salvação.

Paulo descreve uma humanidade à deriva, conduzida pelas paixões e entregue aos “desejos da carne”. Trata-se do estado de morte no pecado. Essa vida do “antes” não tinha apenas contornos de erros pessoais, mas era influenciada por forças maiores - o que Paulo chama de “o Chefe das potências dos ares”. Nesse contexto, ele afirma que a situação crítica do homem se deu não só por culpa própria, mas também era impulsionada por forças espirituais malignas. Aqui, Paulo nos faz entender que o pecado pessoal não é um evento isolado na alma do indivíduo; ele também se enraíza nas estruturas sociais, criando um ambiente que favorece a propagação do erro e da morte. 

O “Chefe das potências dos ares”, chamado de “Diabo” em Efésios 4,27 e 6,11, é uma realidade ativa e perigosa que age tanto no plano espiritual quanto no material. Ele opera no mundo por meio das pessoas que se deixam influenciar por suas “sugestões” (ou tentações). Na visão antiga, o ar era a morada e o domínio dos espíritos malignos (liderados por esse “Chefe”), que atuavam de forma constante na vida dos chamados “rebeldes” (ou pecadores). O termo “éon”, que se aproxima do que se traduziu acima como “atualmente”, aponta para uma dimensão de tempo que está sob a influência do Diabo, que mesmo sendo uma força antagônica a Deus, continua submetida a Ele. Esse tempo mesmo é apresentado de forma personificada, como força que se opõe a Deus.

Paulo chega a se referir ao Diabo como “o deus deste mundo” em 2Coríntios 4,4, e João designa essa mesma criatura como o “príncipe deste mundo”, em João 12,31. Essas expressões evidenciam o tipo de domínio que o Diabo exerce, que afeta diretamente a humanidade e suas estruturas sociais, moldando o “mundo presente” (“éon”) em que vivemos. Esse “domínio” diabólico é exercido pelo medo, ilusão, confusão, guerras e divisão, ameaçando e corroendo a história humana. 

A “rebeldia” é a chave para entender como essa influência diabólica se espalha. O homem, em sua rebeldia, rejeita sua semelhança com o Criador e age de forma a se assemelhar ao Diabo. Este, por sua vez, usa contra o homem os seus impulsos e instintos naturais, desviando-os de sua finalidade original, mudando-os em pecado. O que Paulo chama de “desejos da nossa carne” não se limita aos impulsos sexuais desregrados, como geralmente se interpreta. Essa dimensão está incluída na intenção de Paulo, mas é uma dentre várias. Trata-se de toda e qualquer conduta que fira os mandamentos do amor evangélico, como cobiça, inveja, maledicência, gula, etc., ou seja, os desejos e apetites humanos que não se submetem a Deus. É quando o homem vive para fazer suas próprias vontades, em detrimento da vontade divina. No pano de fundo dessa descrição, Paulo revela a luta interior que cada um de nós deve travar para viver a santidade.

A expressão “por natureza” é objeto de discussão há muito tempo. Santo Agostinho, ao explicar o pecado original em várias de suas obras, defende que essa noção que encontramos em Efésios 2,3 é uma clara referência à condição humana herdada de Adão e Eva, os primeiros pais. Dessa forma, ele explica, todos nascemos com essa “mancha”, o que justifica a necessidade do batismo para purificar a todos, inclusive as crianças. Em sua obra “Sobre a Natureza e a Graça”, onde refuta Pelágio, ele aponta a natureza humana como intrinsecamente falha, devido ao pecado original. Essa “condição” nos faz naturalmente “filhos da ira”, ou seja, merecedores das consequências do pecado. Apenas o esforço humano, ao contrário do que pregava o pelagianismo, não é capaz de evitar o pecado e alcançar a salvação. Somente a graça de Deus, concedida gratuitamente por meio de Jesus, pode restaurar a liberdade e a justiça do homem.

Santo Tomás de Aquino reforça e aprofunda essa ideia em sua obra Suma Teológica, questão 82 (“Do pecado original”), onde explica que a expressão “por natureza” de Efésios 2,3 não significa que o pecado original seja algo natural ao homem, no sentido de que este já foi criado dessa forma, pois Deus criou o homem bom e para o bem, mas sim que ele é transmitido pela geração natural, ou seja, pelo nascimento carnal. Ele cita João 3,6: “o que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito”, para mostrar que o homem precisa nascer de novo pelo Espírito Santo, mediante o batismo, para ser liberto do pecado original e da ira de Deus. 

O pecado original em nós não é um ato, mas um estado, uma disposição da alma, que consiste na desordem das potências inferiores em relação à razão. Podemos ainda chamar o pecado original de “pecado por analogia”, na medida em que ele é uma participação indireta no pecado de Adão. Contudo, é importante destacar que os “pecados atuais” são atos voluntários do indivíduo, enquanto o pecado original é uma culpa contraída pela origem comum da humanidade. 

O batismo apaga completamente o pecado original, mas não totalmente as suas consequências. A concupiscência permanece como uma ferida na natureza humana, que precisa ser tratada pelo esforço humano em uma vida pautada na graça de Deus. Ela só será vencida completamente na vida eterna. O batismo, pela graça santificante, nos capacita a viver segundo a vontade de Deus, mas não anula o nosso livre-arbítrio, que nos permite escolher o mal. Dessa forma, o homem ainda é responsável por seus atos e deve lutar contra as tentações do “Chefe das potências dos ares”, usando as armas que Deus nos deu: a oração, os sacramentos e a prática das virtudes. 

Por outro lado, parte dos autores modernos não enxergam em “por natureza” uma afirmação do pecado original, enquanto outros chegam mesmo a negar essa doutrina. Muitos vêem o conceito contido nessa expressão mais como um retrato existencialista da condição humana, suscetível ao erro e à imperfeição, do que como uma mancha “hereditária” de Adão e Eva. 

Em nosso estudo, seguimos admitindo a doutrina do pecado original, segundo os testemunhos da razão e da fé da Igreja. Pela razão, dizemos que a suscetibilidade ao pecado da natureza humana não é natural, mas acidental, causada por algum fator que alterou a condição original do homem. Se aceitamos que Deus criou o homem bom e para o bem, e o homem não age conforme a intenção do Criador, nele existe algo que o desviou de sua finalidade. Assim, recorrendo ao princípio da causalidade, segundo o qual todo efeito tem sua causa adequada, podemos afirmar que deve existir uma causa anterior a esse estado pecaminoso, que corrompeu a natureza humana. Essa causa é o pecado original, cometido pelo primeiro homem e transmitido a todos os seus descendentes pela geração natural.

Pela fé, a negação do pecado original torna-se contrária à revelação divina nas Sagradas Escrituras, que narra a queda dos primeiros pais em Gênesis 3. Além disso, a Tradição Apostólica confirma essa doutrina nos concílios e na patrística. O Catecismo da Igreja Católica, citando o Concílio de Trento, afirma que o pecado original é transmitido com a natureza humana, “não por imitação, mas por propagação”, e que, assim, é “próprio de cada um” (CIC 419). Além disso, afirma ainda que “não se pode tocar na revelação do pecado original sem atentar contra o mistério de Cristo” (CIC 388), ou seja, a doutrina do pecado original é uma verdade fundamental da nossa fé. Essa realidade é um mistério de iniquidade que só pode ser conhecido pela fé iluminada pela graça de Deus.

Nesse ponto, a graça de Deus surge como nossa única esperança. Sem a intervenção divina, o homem não pode se salvar; a ruptura com o “antes” só foi possível pela ação gratuita de Deus. Na visão de Paulo, essa graça é o único recurso que temos para resistir às influências malignas que insistem em nos rodear. Assim, a graça não só redime o indivíduo de seu passado pecaminoso, mas também tem o poder de transformar as estruturas sociais que foram corrompidas pelo pecado. A descrição que Paulo faz a respeito do passado de pecado da humanidade é crua e sem retoques, pois ele quer realmente impactar seus interlocutores. Mas ele faz isso para preparar o terreno para o que vem depois: a transformação extraordinária operada pela graça de Deus.


Deus, porém, rico em misericórdia, pelo imenso amor com que nos amou, quando ainda estávamos mortos por causa dos nossos pecados, deu-nos a vida com Cristo. - É por graça que fostes salvos! - Ressuscitou-nos com ele e com ele fez-nos sentar nos céus, em Cristo Jesus! Assim, por sua bondade para conosco no Cristo Jesus, Deus quis mostrar, nos séculos futuros, a incomparável riqueza de sua graça.” (vv. 4-7) 

“Rico em misericórdia”, mas o que isso significa na prática? Paulo “vira a chave” e começa a iluminar a situação tenebrosa apresentada nos versículos de 1 a 3. Deus não ficou assistindo de camarote à derrocada da história humana; ele interveio diretamente! Fez o que precisava ser feito para reverter nossa situação de morte. Portanto, ao falar da misericórdia de Deus, não nos referimos a um simples sentimento bonitinho em relação aos outros ou a um mero ato de bondade, mas a uma verdadeira ação transformadora que refaz completamente a vida de quem a recebe: é um ato radical! A misericórdia de Deus não faz perguntas ou fica paralisada em especulações; ela age!

Dessa forma, a misericórdia divina se antecipou ao nosso fim iminente, oferecendo solução para nossas “mortes”. Lembremos de que Deus nos amou quando ainda éramos pecadores (Rm 5,8) ou, como diz João: “Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19). A misericórdia é a primeira iniciativa no processo da salvação. Somos como um campo de belas flores e ervas daninhas. A misericórdia de Deus é como uma chuva que cai sobre tudo, não escolhendo apenas as belas flores. Deus conhece nossas falhas, nossos pecados, mas ainda assim nos banha com seu amor misericordioso. Se fosse uma questão de merecimento, estaríamos em apuros, desfrutando não de uma chuva refrescante, mas enfrentando a tempestade de sua ira. Aqui, Paulo contrasta a condição humana e o poder de Deus, que nos envolve com um amor que é, em si mesmo, uma forma de libertação. 

O amor de Deus é imenso, insiste Paulo, elevando-nos acima de nossas falhas. Antes mortos, agora vivos. E vivos para uma missão, para um propósito que vai além de nós mesmos. É uma transformação de dentro para fora, que começa no coração e se estende às nossas atitudes exteriores. Ser vivificado significa viver o amor de Deus na prática, em uma vida coerente com nossa nova identidade. Esse tema da transformação da vida é fundamental em Efésios, cujo povo era oriundo predominantemente do paganismo.

Em nossa perícope temos ainda uma perspectiva fascinante: a Escatologia Realizada. Essa ideia nos faz compreender que a ressurreição e a vida eterna são experiências já possíveis nesta vida, complementando a explicação de Romanos 5,9-10; 6,4-5, que apresenta tais realidades como esperanças futuras. Tal argumento soteriológico é próprio de Efésios e Colossenses. Quem crê em Jesus e vive seu projeto já habita, de certo modo, na dimensão da vida eterna. É como se a barreira do tempo se tornasse permeável, permitindo um vislumbre da eternidade aqui e agora. Aos cristãos aplica-se o que se diz de Jesus em Efésios 1,20. O poder do Senhor Ressuscitado é compartilhado entre Cristo-Cabeça e Igreja-Corpo, de modo que os inseridos na Igreja já compartilham da nova vida inaugurada na ressurreição e exaltação de Jesus na glória.

Entretanto, essa concepção não nos oferece carta branca para o comodismo. Paulo equilibra seu discurso e nos lembra que, ainda que estejamos espiritualmente unidos ao Cristo glorioso, ainda enfrentamos os desafios da vida terrena. Há uma dualidade interessante: por um lado, já experimentamos a graça redentora de Cristo e a nova vida que nos espera no Céu; por outro, continuamos em uma luta constante contra as forças do mal. Basta conferir as várias exortações dos capítulos 4 e 5, além do alerta acerca do combate espiritual em 6,10-20.


“É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de Deus! Não vem das obras, para que ninguém se glorie. Somos feitos por ele, criados em Cristo Jesus, em vista das boas obras que preparou de antemão, para que nelas caminhemos.” (vv. 8-10)

Quando se trata da relação entre salvação pela graça, fé e boas obras, a história da Igreja está repleta de controvérsias fervorosas. Efésios 2,1-10 sempre teve um grande potencial polêmico nesse contexto. No entanto, hoje em dia, essa temática parece encontrar espaços mais pacíficos para discussão. Entre os cristãos, há um consenso crescente de que a graça de Deus é o único caminho para a salvação. Avança-se também no entendimento de que o homem redimido deve manifestar essa salvação em uma vida ativa de boas obras.

O ser humano não pode alcançar a salvação apenas por meio de seus esforços e méritos. A graça de Deus é necessária e indispensável. Deus livrou o povo da Aliança e os pagãos da morte unicamente pela graça. Nenhum desses povos mereceu tão grande dom. Dessa forma, Paulo ensina que nossa caminhada de fé não se trata de uma corrida para “conquistar” a salvação por meio das boas obras, pois “ser salvo” não é uma recompensa para os méritos pessoais.

Nos versículos 8-9, Paulo afirma que até mesmo a fé é um dom de Deus, ou seja, que o homem não pode nem merecê-la nem adquiri-la somente com suas próprias forças, mas sim pelo reconhecimento e assentimento a Cristo Salvador. Consequentemente, afirma São João Crisóstomo, nem mesmo a fé é nossa! Paulo também diz em 1Coríntios 4,7: “O que tens que não tenhas recebido?” O homem é um completo mendigo de Deus.

Ao dizer “fostes salvos”, Paulo apresenta o “hoje” (graça/vida) que supera o “antes” (pecado/morte). No judaísmo da época, especialmente entre alguns fariseus, acreditava-se que o cumprimento de toda a Lei (ou das “obras da Lei”) aceleraria a vinda do Messias. Segundo essa crença, quando todos seguissem a Lei à risca, o Messias viria.

Zuleica Silvano (2023) esclarece que a palavra “doron”, usada para descrever o “dom” da salvação, aparece apenas uma vez nos escritos paulinos. Ela é distinta de “carisma”, para que a graça não seja confundida com outros dons, mas compreendida como a base de todos eles.

Wright (2020), por sua vez, distingue “justificação” de “salvação” na teologia paulina. Justificação refere-se à inclusão na família de Deus por meio da fé, como exposto em Romanos, Gálatas e Filipenses. Salvação, como apresentado em Efésios 2,8, trata do resgate divino de um destino fatal. Assim, a justificação responde à questão de pertencimento, e a salvação aborda o livramento do pecado e da morte. Ambas são dádivas de Deus, excluindo qualquer mérito humano. Paulo destaca que a fé em Jesus ressuscitado, e não as “obras da lei” como o shabat e a circuncisão, é o que identifica a comunidade cristã.

A fé leva à transformação de vida, observa Bento XVI. Ela não consiste apenas em aceitar intelectualmente as verdades reveladas por Deus, mas também em transformar a vida de quem crê. Dessa forma, a fé em Jesus nos possibilita vivenciar a salvação ainda neste mundo, conforme nos configuramos a Cristo e, assim, crescemos em santidade.

A graça nos alcança por meio da fé, dos sacramentos e das boas obras. Estas últimas ilustram o estilo de vida que Paulo descreverá nos capítulos 4 a 6. O caminho das boas obras é necessariamente o caminho do cristão, já que Deus nos preparou para ele. Em outras palavras, Deus preparou as boas obras para nós e, ao mesmo tempo, nos preparou para realizá-las. Conforme Paulo, nós fomos criados em vista das boas obras (v. 10).

Compreendemos, assim, que uma resposta humana positiva ao dom gratuito de Deus também é “necessária” para a salvação. Embora o homem não possa se salvar por si mesmo, é importante ressaltar que ele pode se condenar. Agostinho nos esclarece: “Deus, que te criou sem ti, não te salvará sem ti.” Exercendo o livre-arbítrio, a pessoa pode aceitar ou recusar o dom da salvação.

O Concílio de Trento (1545-1563) declara que a salvação advém da graça de Deus, que é recebida pela fé e celebrada nos sacramentos. Ressalta também o papel das boas obras no plano da salvação. Assim, a fé, com as obras realizadas em estado de graça, contribui de alguma forma para a justificação e santificação do crente. Para nós católicos, a salvação é um processo contínuo, em que a santidade aumenta na medida da proximidade com Deus. Fé e boas obras representam nossa cooperação com a graça divina. Além disso, a Igreja rejeita a doutrina protestante da “segurança eterna” (“uma vez salvo, sempre salvo”) e alerta que a graça da salvação pode se perder mediante pecados graves (Cân. 23 e 33). Isso não implica que o pecado supere a graça, mas que o próprio ato de pecar representa a rejeição dessa mesma graça.

Paulo, em Filipenses 2,12, instrui: “Trabalhai na vossa salvação”, destacando a participação humana nesse processo. Deus já planejou as boas obras a serem feitas; cabe a nós discerni-las e concretizá-las. É Deus quem nos coloca em condições de realizar as boas obras que nos pede. Santo Agostinho expressa essa realidade, quando reza: “Dá-me o que me mandas, e mandas o que queiras”.

Na perspectiva paulina, fé não é apenas receber passivamente a graça de Deus, mas uma forma ativa de acolhimento, onde receber já é agir. Esse acolhimento implica uma reorganização da vida, que “encarne” o dom. Como feitos à imagem de Deus, que é suma bondade, os seres humanos são chamados a imitar esse bem em suas próprias ações. A fé autêntica, então, se manifesta em boas obras, que são tanto uma resposta ao agir de Deus quanto um reflexo da nova vida em Cristo. É o que afirma Tiago, quando diz que uma fé desprovida de ações concretas é, na verdade, uma fé morta (Tg 2,17). 

A caridade é a nossa participação no amor de Deus ou, melhor dizendo, é a participação do amor de Deus em nossas ações. Santo Tomás de Aquino nos ajuda a concluir: “Quem faz o bem com as suas mãos, louva o Senhor, e quem o confessa com a boca, louva o Senhor. Louva-o com a boca, louva-o com as obras” (Enarrationes in Psalmos, 91,2).


Reflexão

1) Vimos que nossa conduta muitas vezes é influenciada pelas sugestões malignas. Isso não significa dizer que devemos colocar os nossos pecados na “conta do Diabo”, pois ainda que sejamos tentados, o pecado continua sendo um ato livre e pessoal de cada um. Por isso, recorramos com toda confiança à bondade e misericórdia de Deus, que nos concedeu a sua graça para que possamos, se assim o quisermos, resistir a toda e qualquer tentação!

2) Paulo nos apresenta a misericórdia em ação: Deus agiu antes que nosso destino fatal se concretizasse. Não devemos nos fechar em sentimentalismos vazios, mas partir para a ação transformadora. É humano que fiquemos comovidos com tantas situações de pecado e injustiça, mas devemos transcender esses sentimentos: o que podemos fazer para mudar tais situações?

3) Fomos alertados contra o comodismo: ainda que a graça divina seja um presente imerecido, não devemos sucumbir à complacência. A vida espiritual demanda esforço constante e vigilância ativa, pois estamos imersos em uma luta contra as forças do mal. Quando tais forças permeiam a sociedade, também é papel dos cristãos combatê-las. Quando os sistemas escondem estruturas de pecado, é nosso papel desmascará-los.

4) Nos deparamos ainda com os conceitos de tempo e eternidade, no que comumente se chama de Escatologia Realizada. A vida eterna já se manifesta no presente, mesmo que em meio às batalhas cotidianas. Como viver uma espiritualidade equilibrada, que saiba combater nesta vida e já experimentando a alegria eterna? Que a esperança das alegrias imorredouras alimente nossa força e nos revitalize na busca pela santidade.


Referências

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