O muro foi derrubado: Cristo é a nossa paz! (Ef 2,11-22)

Por: - 14 de novembro de 2023

Imagem: Bernardo Ramonfaur (www.iknu.mx) - uso autorizado pelo artista.

Paulo nos fala de um “muro de separação” que foi destruído por Jesus. Esse “muro” é uma metáfora com vários significados possíveis: pode ser o muro físico do Templo de Jerusalém, que dividia judeus e gentios; o pecado (a “inimizade na carne”, como disse são João Crisóstomo); ou mesmo a Lei, que regulava a relação dos judeus com os não-judeus, gerando um sentimento recíproco de inimizade que, simbolicamente, era um “muro” que impedia uma convivência pacífica.


Contexto

A proposta cristã de união entre gentios e judeus em uma mesma comunidade desafiou o exclusivismo étnico e religioso dos judeus da época de Jesus e dos Apóstolos. Paulo, mesmo perseguido por cristãos judaizantes, apresenta a reconciliação como um fato consumado. Sua abordagem positiva diferencia Efésios de outras cartas, pois o apóstolo enfatiza a unidade da Igreja universal e evita o combate frontal a polêmicas específicas. Ele continua apresentando a Igreja sob a ótica da “escatologia realizada”.

Paulo destaca novamente a condição dos gentios antes de se converterem e aponta o fato de serem chamados “incircuncisos” e estrangeiros em relação às promessas de Deus ao povo da Aliança. A abordagem do tema da unidade do Corpo de Cristo é feita salientando essa relação entre judeus e gentios. 

À utilização dos conceitos de tempo (“antes – agora”) são acrescentados os conceitos de espaço (“distante – próximo”), ressaltando sempre a unidade como resultado da ação de Jesus, ou seja, na Igreja não deve haver privilégios baseados em raça, cultura ou nacionalidade. Nela, todos são cidadãos, filhos chamados a unirem-se ao Pai em um só Espírito. 

No artigo anterior, vimos que Paulo ressaltou que judeus e gentios eram igualmente pecadores e merecedores da ira divina. No entanto, no presente estudo, ele detalha as diferenças entre cada povo nessa condição. Os israelitas, apesar de pecadores, possuíam as alianças e a Lei, o que os fazia mais “próximos” das promessas de Deus. Os gentios, sem esse conhecimento, encontravam-se mais “distantes” de tais esperanças.


Comentário

Portanto, vós, que outrora éreis gentios na carne e éreis chamados de incircuncisos pelos que se chamam de circuncisos na carne por mãos humanas, estáveis sem “Cristo”, não participáveis da cidadania de Israel nem das alianças da Promessa, não tínheis esperança nem Deus verdadeiro. Agora, porém, no Cristo Jesus, vós que outrora estáveis longe chegastes perto, graças ao sangue de Cristo. (vv. 11-13)

Os gentios (“vós”), pagãos de nascimento, eram assim classificados por não pertencerem ao povo da Aliança, que eram os judeus. Estes últimos, os “circuncidados”, chamavam pejorativamente os gentios de “incircuncisos”. Essa expressão era um insulto em Israel, como podemos ver em algumas passagens bíblicas, como 1Samuel 14,6; 17,36; 31,4, que nos ajudam a compreender um pouco o sentimento de superioridade racial dos judeus e o desafio que Paulo enfrentou ao propor sua teologia de inclusão dos gentios na Nova Aliança.

A circuncisão consiste no corte do prepúcio, uma operação naturalmente realizada “na carne” e feita “por mãos humanas”. Era o sinal visível da aliança com Abraão (cf. Gn 17,9-14) e mantida na aliança mosaica (Ex 12,48). Essa operação, que deveria ser realizada no oitavo dia de nascimento conforme Levítico 12,3, simbolizava a pertença ao judaísmo e implicava o compromisso com a Lei mosaica. Jesus e Paulo passaram por esse rito, conforme vemos em Lucas 2,21 e Filipenses 3,5, respectivamente.

No Antigo Testamento, a expressão “feito por mãos humanas” normalmente está vinculada à denúncia da idolatria, uma vez que as imagens dos ídolos eram feitas pelas mãos de seus adoradores (cf. 2Rs 19,18; 2Cr 32,19; Sl 115,4; 135,15; Sb 13,10). Em Marcos (14,58), uma declaração atribui a Jesus o uso dessa expressão em referência ao Templo de Jerusalém. O autor de Hebreus (9,11.24), também a utiliza em relação ao Templo, referindo-se ao santuário “feito por mãos humanas” como apenas uma cópia do verdadeiro santuário, o celestial, que não foi feito por mãos humanas. E, aqui (v. 11), Paulo a emprega no contexto da circuncisão (veja também: At 7,48; 17,24; 19,26; 2Cor 5,1). 

O ídolo é aquilo que é colocado no lugar de Deus. Aquilo que Deus deu ao seu povo como sinal da sua presença foi, aos poucos, entendido de forma absoluta, causando confusão na compreensão da vontade de Deus, que queria sobretudo misericórdia (não sacrifícios) e conhecimento de Deus (mais do que holocaustos), como denunciou o profeta Oséias (6,6). Esta profecia foi citada pelo próprio Jesus em Mateus 9,13.

Um caso icônico é o da serpente de bronze no deserto: forjada para curar os hebreus, cumpriu seu papel (cf. Nm 21,4-9). Com o tempo, porém, passou a ser usada de forma supersticiosa, convertendo-se em ídolo. Resultado: com a aprovação de Deus, o rei Ezequias a despedaçou (cf. 2Rs 18,3-4). Da mesma forma, o templo e a circuncisão cumpriram seu papel na história da salvação, mas precisaram ser substituídos, pois foram convertidos em verdadeiros ídolos.

Paulo, diante da realidade da Nova Aliança, aponta a limitação da circuncisão enquanto operação meramente física. Ele reconhece que, através dela, os judeus receberam privilégios como as alianças, a legislação, o culto e o conhecimento das promessas (Rm 9,4-5). Os gentios, não circuncidados, estavam excluídos dessas promessas, sobretudo da esperança messiânica. É por isso que Paulo afirma que eles estavam “sem Cristo” e sem “esperança”, ou seja, sem a expectativa da vinda de Cristo. Além disso, por serem pagãos, faltava-lhes o conhecimento do Deus verdadeiro, o Deus de Israel: eles estavam “sem Deus”.

Podemos ver que a circuncisão servia como um elemento de divisão, distinguindo os “escolhidos” dos “não escolhidos”, povo da aliança e pagãos. Contudo, Paulo esclarece que esse elemento era provisório e foi superado pela eleição em Cristo. A circuncisão atinge apenas a superfície, enquanto a redenção alcança a profundidade da pessoa. Em Cristo, somos circuncidados “no coração”, símbolo da conversão interior (Rm 2,28-29; Cl 2,11-12). O distanciamento entre judeus e gentios foi superado por Jesus, cuja ação é ponte, e não muro.


De fato, ele é a nossa paz: de dois povos fez um só, em sua carne derrubando o muro da inimizade que os separava e abolindo a Lei com seus mandamentos e exigências. Ele quis, assim, dos dois povos formar em si mesmo um só homem novo, estabelecendo a paz e reconciliando os dois com Deus, em um só corpo, mediante a cruz, na qual matou a inimizade. Veio anunciar a paz a vós que estáveis longe e paz para os que estavam perto. É por ele que todos nós temos acesso ao Pai, num só Espírito. (vv. 14-18)

Isaías nos fala do mensageiro da paz: “Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz” (52,7), e que a paz de Deus também é cura: “Paz! Paz ao que está longe e ao que está perto, diz o Senhor, eu o curarei” (57,19). Já o profeta Miquéias (5,4) identifica a paz com o rei messiânico: “Ele mesmo será a nossa paz!” Zacarias, por sua vez (9,10), proclama que o Messias deveria anunciar a paz a todas as nações, o que inclui os não-judeus. Na esteira desses profetas e anunciando a realidade daquilo que para eles era apenas uma esperança, Paulo afirma: “Ele [Jesus Cristo] é a nossa paz!”

Você, querido leitor, já deve ter ouvido o que vou dizer, mas preciso repetir: a paz não é uma teoria, doutrina ou ideologia, nem mesmo um simples estado prolongado de sossego ou ausência de guerras: é uma pessoa! Mais especificamente, a segunda pessoa da Santíssima Trindade: Nosso Senhor Jesus Cristo, o Príncipe da paz (Is 9,5)! Paulo fala de Jesus, nossa paz, no contexto da reconciliação, e isso tem muito a nos dizer.

Nas Sagradas Escrituras, quando ouvimos falar de paz, devemos ter em mente o sentido hebraico do termo, conhecido como Shalom. A paz-shalom vai do bem-estar físico ao espiritual, alcançando até mesmo os sentidos de salvação e vida eterna. Ela é tudo o que de bom Deus pode dar a alguém, pois é a plenitude de todas as bênçãos, ou seja, é a riqueza de Deus em si mesmo. O Pai nos deu tudo em seu Filho; por isso, Paulo afirma que Jesus é a nossa paz, o dom por excelência, o supremo bem.

A paz “estabelecida” por Jesus (v. 15) consiste em sua obra de redenção, que tem seu ápice no mistério Pascal (Paixão, Morte e Ressurreição), cujo fruto é a reconciliação dos homens com Deus, entre si, consigo mesmo e com toda a criação (Jo 14,27; Rm 5,1; CIC 2305; 2415). A verdadeira causa da divisão na história humana é o pecado original. Quando Jesus reparou a desobediência de Adão, reencontramos o caminho para a unidade interior, que se reflete na harmonia com o que está à nossa volta. Assim, a cruz se torna o símbolo da reconciliação e da paz entre as pessoas (vv. 14-15) e Deus (vv. 16-18).

Nesse contexto, Paulo nos fala de um “muro de separação” que foi destruído por Jesus. Assim, temos duas importantes consequências da redenção: (1) estabelecer a paz e (2) destruir a inimizade. Criar e destruir, ou “destruir criando”. Isso nos lembra a história do juiz Sansão, que “morreu matando”, para vencer seus inimigos filisteus (cf. Jz 16,23.28-30). Jesus morreu para vencer o pecado e “matar” a inimizade, enquanto cria/estabelece a unidade-paz, por esse mesmo sacrifício.

O “muro de separação” é uma metáfora com vários significados possíveis e, em nosso entendimento, complementares. Ele pode ser o muro físico do Templo de Jerusalém, que dividia judeus e gentios, onde a estes só era permitido o acesso aos pátios exteriores, sendo que poderiam sofrer pena capital caso adentrassem no Templo (cf. At 21,28-31). Para São João Crisóstomo, o “muro” era o pecado, ou a “inimizade na carne”, que separava todos os homens de Deus (cf. Is 59,2), como uma espécie de “muro espiritual” entre céu e terra.

Na teologia do Antigo Testamento, a Lei como “muro” tinha conotação positiva entre os judeus, pois eles viam a lei mosaica como um muro de proteção que os separava dos gentios e os preservava da impureza. Por outro lado, as severas instruções que regulavam a relação dos judeus com os não-judeus geravam um sentimento recíproco de inimizade que, simbolicamente, era um “muro” impedindo uma convivência pacífica. Além disso, suas inúmeras prescrições, acrescidas de meticulosas e escrupulosas interpretações, tornavam-na quase impraticável, um “muro” para os próprios judeus, funcionando mais como barreira do que como caminho para a santidade, um jugo que não eram capazes de suportar (cf. At 15,7-11).

É importante notar que, na história da salvação, Deus escolheu um povo e quis precisar desse povo para se revelar gradualmente aos homens. Assim, a vinda do Messias necessitava do povo judaico, mas essa “necessidade” foi interpretada pelos judeus como um exclusivismo que os tornava etnicamente superiores. O fato de o Messias vir dos judeus não significa que Ele veio apenas para eles. Tornar isso compreensível é justamente a missão de Paulo, o “apóstolo dos gentios”.

A “abolição” da Lei, mencionada no versículo 15, ocorre junto com a “derrubada do muro”, ou seja, da superação da Lei enquanto barreira para a paz entre judeus e gentios. Com a realização da obra de redenção, sobretudo o sacrifício na cruz (v. 16), não são mais necessários os ritos de sacrifício de animais, as leis relativas aos alimentos e nem o rito da circuncisão. O “tempo pedagógico” da Lei terminou com o início da era messiânica (cf. Gl 3,23-27). E, se a vigência da Lei acabou, também encerraram-se os preceitos de segregação dos povos.

Note-se que Paulo não sugere que Jesus desprezou a Lei ou a descartou. Ao contrário, Jesus a cumpriu perfeitamente, submetendo-se, por meio da cruz, à pena que era devida. A Lei mosaica, portanto, não é abolida em desdém, mas concluída e substituída. Por outro lado, mesmo mantendo sua relevância para os cristãos em outros pontos e orientando em parte suas ações, ela não possui poder salvífico. Na ressurreição de Jesus e no dom do Espírito Santo encontramos o caminho definitivo para o Pai. Paulo mesmo cita o Decálogo em 6,2 e estabelece regras morais na segunda metade da carta, demonstrando assim que não considera a Lei sem valor. Ela foi cumprida e, portanto, concluída.

O “homem novo” que surge deve viver os últimos tempos sob a nova Lei, fundamentada no amor, capaz de superar as diferenças em vista da salvação. É muito mais do que uma convivência pacífica; é viver laços profundos de fraternidade. O “homem novo” repercute nas dimensões pessoais e comunitárias, pois deve integrar “um só corpo”. Jesus é o “homem novo” por excelência, o protótipo da nova humanidade, o modelo e fonte de uma nova forma de existência.

A expressão “num só corpo” (v. 16) pode ser interpretada de duas maneiras: referindo-se ao corpo físico de Cristo na cruz e ao Corpo místico de Cristo, que é a Igreja. No primeiro sentido, o sacrifício de Cristo na cruz é o ponto culminante da reconciliação; no segundo, a Igreja, como o Corpo de Cristo, simboliza a transformação dos povos em uma nova realidade humana e espiritual. Santo Agostinho ensina que o Espírito Santo é como a alma deste Corpo Místico, pois é quem dá vida e mantém a unidade entre os diversos membros: o que a alma é para o nosso corpo, assim é o Espírito Santo para a Igreja.

Em seu contexto original, Isaías 57,19 foi uma promessa de salvação para os hebreus deportados na Babilônia, distantes da própria terra, pela qual ansiavam há tanto tempo. Terra que era objeto de esperança de retorno. Essa passagem encontra eco no discurso de Pedro na festa de Pentecoste em Atos 2,39. Em Efésios 2,17, Paulo a usa livremente como uma promessa realizada para os convertidos do paganismo. Jesus mesmo afirmou que muitos viriam do oriente e do ocidente (“de longe”) para se sentarem à mesa do Reino de Deus junto com Abraão, Isaac e Jacó (cf. Mt 8,11). 


Portanto, já não sois estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e familiares de Deus; edificados sobre o alicerce dos apóstolos e dos profetas, tendo como pedra angular o próprio Cristo Jesus. Nele, a construção toda, bem ajustada, vai crescendo e formando um templo santo no Senhor. Nele, vós também sois juntamente edificados para serdes morada de Deus, no Espírito. (vv. 19-22)

Paulo não relembra o passado dos gentios para “jogar na cara” deles os seus pecados. Pelo contrário, ele quer, com isso, exaltar a nova condição dos gentios na comunidade cristã: eles estão no mesmo degrau dos judeus convertidos. E aqui não se trata de que eles tenham sido “elevados” à mesma dignidade dos judeus. Não é isso. Ambos foram chamados, por pura graça, a formarem o povo cristão. O gentio não precisou se tornar judeu para depois se tornar cristão. Ambos foram trazidos a outro estado, transformados no “homem novo”. Se antes os dois povos eram iguais no pecado e “merecedores da ira de Deus” (2,1-3), o mesmo aconteceu em relação à eleição para a salvação. Judeus e gentios foram tornados membros da mesma família em virtude da adoção divina.

Em relação a Israel, os gentios poderiam mesmo ser chamados de “estrangeiros” e “forasteiros”. Contudo, em virtude do que Jesus realizou, chegaram tão próximos que passaram a integrar a família de Deus. Alonso Schokel nos lembra que Israel também era chamado de “Casa de Israel”, no meio da qual habitava YHWH, no templo. Paulo proclama que agora somos todos família de Deus, membros da “casa de Deus”, que é um templo vivo, espiritual, no qual habita a Trindade.

O edifício é um templo santo: Jesus Ressuscitado. Mas também é cada cristão, que é pedra e templo ao mesmo tempo. As figuras são dinâmicas. Em 1Coríntios 3,16-17, o templo são os cristãos individualmente. Também o apóstolo Pedro usou essas imagens para descrever a construção do edifício espiritual (cf. 1Pd 2,4-8). Certamente, cada tijolo de uma construção acabada pode ser dito que é o próprio edifício, mas somente enquanto faz parte do todo. Ninguém é Igreja sozinho.

Essa teologia é uma forma de superar o entendimento difundido de que Deus habitava exclusivamente no Templo de Jerusalém (2Sm 7,13; Jo 4,23). Uma vez que Jesus é o templo da Nova Aliança (cf. Jo 2,19-21), podemos afirmar que a Igreja, a nova comunidade, enquanto corpo do Cristo-Cabeça, é a habitação de Deus no mundo. Em João 14,23, Jesus ensinou: “Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada”. Elisabete da Trindade resumiu toda a doutrina da inabitação divina quando afirmou: “Encontrei meu céu na terra: o céu é Deus e na minha alma ele está!”

Ao dizer que o templo ainda está sendo edificado, Paulo aponta para a dimensão missionária da vida cristã, pois ainda há “tijolos” que não foram colocados em seus devidos lugares. A comunidade cristã deve crescer ainda mais a cada dia. Além disso, o verbo está na voz passiva, indicando que o construtor é o próprio Deus. Assim, a comunidade cristã é um canteiro de obras sempre aberto, e permanecerá em obras até a consumação dos tempos.

A metáfora de Cristo como pedra angular, no versículo 20, faz uso de um termo encontrado apenas na versão grega de Isaías 28,16, que simboliza o rei messiânico: “Assim diz o Senhor: Eis que porei em Sião uma pedra, uma pedra de granito, pedra angular e preciosa, uma pedra de alicerce bem firmada: aquele que nela puser a sua confiança não será abalado”. Impossível não lembrar imediatamente dos versos do Salmo 118,22-23: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto vem do Senhor, e é maravilha aos nossos olhos”.

Nas construções romanas, sobretudo nos famosos arcos romanos, a pedra angular sustentava a estrutura do arco desde cima, ao centro. Dessa forma, os dois lados do arco não se chocavam porque a pedra angular os ligava um ao outro. Essa imagem remete a Jesus como o apoio sob o qual estão unidos judeus e gentios. Jesus é o ponto de sustentação e união, que reina “desde cima”, uma vez que está entronizado à direita do Pai.

Já na arquitetura semítica, a pedra angular era colocada na fundação das construções, servindo como parâmetro para o alinhamento de toda a estrutura. Assim, Jesus é o parâmetro de vida para todo aquele que se diz cristão. Quer saber quão cristão é? Confronte sua vida com o Evangelho! Somente uma vida que tem Jesus nas “fundações” pode alinhar e estruturar um crescimento espiritual e humano verdadeiro.

Em Efésios, o fundamento do edifício são os apóstolos e os profetas. Essa afirmação carece de uma pequena explicação. Antes de mais nada, é fácil entender que os Apóstolos são os Doze. Os profetas, porém, não são os profetas do Antigo Testamento. Não que eles não sejam importantes, mas, nesse caso em particular, Paulo se refere a figuras carismáticas responsáveis pelo anúncio do Evangelho e por animar as comunidades. São profetas do Novo Testamento (At 11,27; 1Cor 12,28; Ap 18,20; Didaqué 10,7; 11,7-12). Em Efésios 4,11-12 vemos os “profetas” elencados juntamente com outros ministérios da igreja primitiva e, mesmo aí, sua posição é o “segundo lugar”, logo após os Apóstolos.

A Bíblia de Navarra aponta uma característica singular ao notar que Paulo usa as imagens da família (“casa de Deus”) e da vida em sociedade (“concidadãos”). As imagens são complementares, supondo que todos os destinatários têm suas respectivas famílias e, naturalmente, vivem em sociedade. Trata-se das dimensões privada e pública da vida humana. A vida cristã gera laços de fraternidade universal, que devem repercutir necessariamente em uma sociedade justa e fraterna.

A dignidade conferida ao cristão é de uma grandeza imensurável, fruto apenas da misericórdia de Deus. Atônito de gratidão, São João Crisóstomo exclama: “Vês que não estamos inscritos simplesmente na cidade dos judeus, mas sim na dos santos e grandes varões, a saber: Abraão, Moisés e Elias, e nela aparecemos? Vê que mescla: gentios, judeus, apóstolos, profetas, Cristo!”

Por fim, percebe-se que os versículos 18.20-22 possuem uma formulação trinitária. Entendemos que essa é uma forma de Paulo dizer às comunidades que o modelo de comunhão é Deus em sua intimidade: a Trindade, a comunidade perfeita.

 

Reflexão

1) Nós, povo de Deus, devemos crescer sempre mais na consciência de que somos, pessoal e comunitariamente, um canteiro de obras, um projeto inacabado em constante construção. Abertos ao novo, não podemos esquecer que a cada dia novas “pedras” chegam para compor o belo edifício da Igreja. Como estamos trabalhando a dimensão do acolhimento de novos irmãos e irmãs em nossas comunidades? Sendo “cristãos em construção”, exigimos dos outros a perfeição que ainda buscamos?

2) Frequentemente se atribui a Gustav Mahler a sentença: “A tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação do fogo”. Paulo nos fala da importância de não esquecermos dos Apóstolos e profetas, cujos esforços lançaram os fundamentos do edifício da nossa fé. Além disso, ele nos adverte que as tradições devem sempre ser vividas no horizonte do mandamento do amor e da fraternidade universal, pois corremos sempre o risco de, ao absolutizar certas tradições, transformá-las em ídolos, em instrumentos de segregação, em fundamento de novos exclusivismos religiosos. Peçamos que o Espírito Santo mantenha na Igreja sempre aceso o fogo do amor e da caridade fraterna.

3) Quantas vezes nos sentimos seguros em nossas comunidades, dentro dos muros da rotina pastoral, empenhados apenas na manutenção do nosso bem-estar. Nesse contexto, o conceito de “Igreja em saída” do Papa Francisco serve para dar uma chacoalhada na nossa rotina espiritual. Será que “nossas seguranças” não faz crescer o comodismo? Qual sua resposta ao apelo do Papa para que saiamos da nossa zona de conforto?

4) São João XXIII, em sua Encíclica Pacem in terris (n. 166-170), afirma que a paz é algo tão sublime, que o esforço humano por si só não é capaz de alcançar. O homem sempre precisará do auxílio do céu, de Deus, do Espírito Santo. Só assim a sociedade humana poderá refletir semelhança com o Reino de Deus. Para tanto, o Papa nos convida a levantar aos céus preces suplicantes para Aquele que com sua oferta de vida alcançou para nós a reconciliação com o Pai, vencendo a morte e o pecado. Unamos as nossas orações para que cada homem e mulher deste mundo possa aceitar em suas vidas a verdadeira paz, o Shalom do Pai, o Cristo Jesus, nossa paz.


Referências

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