Calma, Deus tem um plano! (Ef 1,3-14)

Por: - 05 de setembro de 2023

Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)


Paulo especifica seis bênçãos sucessivas, cuja ordem é muito importante no esquema do hino: eleição (v. 4), predestinação (vv. 5-6), libertação/redenção (vv. 7-8), revelação do mistério (vv. 9-10), herança prometida (vv. 11-12) e o dom do Espírito Santo (vv. 13-14). Todo esse processo serve ao propósito divino de formar uma comunidade, a Igreja.

            

Contexto

A perícope de Efésios 1,3-14 é um texto grego de estilo poético, que nos fala sobre a Igreja - não apenas a comunidade local, mas a igreja universal. Ele nos lembra que não estamos sozinhos e que, nessa jornada como Igreja, nossa comunhão com os irmãos é parte essencial da trama da salvação. De forma semelhante ao que João fez no prólogo do quarto evangelho, Paulo resume toda a sua carta neste hino de abertura.

Paulo compôs uma doxologia, que é basicamente uma canção de louvor a Deus. Ao bendizer a Trindade, ele tomou emprestado da tradição litúrgica judaica a fórmula das orações de bênção, conhecida como “beraká” (hebraico). Ao longo do texto, Paulo especifica seis bênçãos sucessivas, cuja ordem é muito importante no esquema do hino: eleição (v. 4), predestinação (vv. 5-6), libertação/redenção (vv. 7-8), revelação do mistério (vv. 9-10), herança prometida (vv. 11-12) e o dom do Espírito Santo (vv. 13-14).

A “grande bênção” é composta de um só período recheado de genitivos, uma frase bem longa (período simples), expressa dessa forma para indicar a urgência de se anunciar uma grande notícia que há muito estava contida, mas que agora deve ser pronunciada sem mais demora. Imagine Paulo, com sua alegria incontida, transbordando o seu hino num fôlego só! Sua alegria também reside no fato dele ter sido escolhido como o anunciador de tal notícia (do “mistério”).

Bernard de Chartres, filósofo escolástico francês do século XII, afirmou: “Nós somos anões em cima dos ombros de gigantes”, ilustrando a importância de se construir o conhecimento a partir das realizações daqueles que vieram antes de nós. Essa mesma frase foi usada por Einstein em referência a Isaac Newton. Meus irmãos, subamos aos ombros do gigante Paulo de Tarso para contemplar, como em uma visão panorâmica, o plano salvífico de Deus revelado nesse hino arrebatador!

 

Comentário

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda bênção espiritual nos céus, em Cristo.” (v. 3)

Após a curta saudação inicial (vv. 1-2), Paulo já parte para o seu “beraká”, também conhecido como “grande bênção”, que serve como sólida base teológica de toda a carta.

As “berakót” (plural de beraká) fazem parte do cotidiano judaico, sendo recitadas para várias ocasiões do dia, como acordar, tomar uma refeição, receber uma boa notícia, etc., mas sobretudo estão presentes nas grandes ocasiões da vida do povo, como casamentos, festas e celebrações religiosas. Elas geralmente possuem uma fórmula padrão, que começa com as palavras “Baruch Atah Adonai”, que significam “Bendito és Tu, ó Senhor”, seguidas das expressões específicas que descrevem a bênção ou o agradecimento. Por exemplo, antes de comer, uma “beraká” agradece a Deus por prover alimentos.

A “beraká” de Paulo agradece ao Pai pelas bênçãos concedidas a nós através de Jesus Cristo, ou seja, Paulo agradece porque, em Cristo, o Pai nos abençoou com todas as bênçãos possíveis e imagináveis. Porém, Paulo resumiu todas essas bênçãos em seis, como veremos nos versículos seguintes.

O correspondente grego do “beraká” judeu é “eulogia”, que também expressa o sentido de hino de louvor a Deus. Em Cristo, recebemos tudo quanto é necessário para vivermos em comunhão com Deus, em vista da santidade. As bênçãos, originárias dos “céus” ou “regiões celestiais”, nos encorajam a cultivar nossa vida espiritual, de forma a manter nossa existência sempre aberta à transcendência.

As bênçãos “nos céus” se opõem aos “bens terrenos”, notadamente valorizados na região de Éfeso e no império romano pagão, onde se acreditava que os ídolos concediam riquezas materiais. Essa distinção entre o espiritual e o material perpassa toda a carta, culminando na noção do “combate espiritual” em Efésios 6.

O apóstolo inicia a discussão central da epístola: a predestinação dos crentes para receberem as bênçãos eternas da redenção, reconciliação e filiação divina. Isso só é possível por meio de Cristo, o mediador de toda a herança eterna.


“Nele, Deus nos escolheu, antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele, no amor. Conforme o desígnio benevolente de sua vontade, ele nos predestinou à adoção como filhos, por obra de Jesus Cristo, para o louvor e glória de sua graça, com que nos agraciou no seu bem-amado.” (vv. 4-6)

A primeira bênção que Paulo destaca é a eleição (v. 4), um conceito de profunda relevância teológica. Se pensarmos no grego, o termo utilizado por Paulo e que usualmente traduzimos como “nos escolheu” é o mesmo usado na Septuaginta - a versão grega do Antigo Testamento - para indicar a eleição de Israel (Dt 7,6). O interessante aqui é perceber como a origem da Igreja, fundada por Cristo em um momento específico da história, na realidade se estende até o desígnio eterno de Deus.

No Antigo Testamento, o tema da “escolha/eleição” era centrado no povo de Israel. Entretanto, é essencial lembrar que, desde Abraão, a promessa divina já contemplava a bênção a todas as nações da Terra (Gn 12,3). À luz da carta aos Efésios, a eleição divina ganha ainda mais profundidade, sendo descrita como uma ação prévia à própria Criação - o que sugere que a Criação pode ser entendida como um resultado direto da eleição.

Quando pensamos na eleição divina, devemos ter em vista o seu propósito: a transformação moral e espiritual do cristão, voltada para a salvação. Essa transformação se desenvolve “na presença de Deus”, ou seja, em uma relação íntima e contínua com Ele.

Os cristãos da Ásia Menor, em sua grande maioria, vieram do paganismo. Paulo assegura que a eleição deles para a fé cristã não foi fruto do acaso, mas que esse chamado estava inserido no plano eterno de Deus, ainda que cronologicamente os judeus tenham sido os primeiros a serem chamados.

Além disso, tendo em vista o cenário pagão ao seu redor, notoriamente permissivo diante de diversas formas de imoralidade, Paulo insiste na busca por uma vida coerente com a fé cristã, que prestasse o serviço de ser uma demonstração vigorosa da transformação radical que o cristianismo propõe.

Seguindo o mesmo raciocínio, a predestinação (v. 5) surge como um conceito intrinsecamente ligado à eleição. Sob essa perspectiva, não apenas podemos invocar o Pai de Jesus Cristo como nosso próprio Pai, como também fomos predestinados a sermos, por meio de Cristo, filhos adotivos de Deus. Esta não é uma afirmação trivial. Implica uma realidade nova e uma relação filial autêntica com Deus.

Todo esse processo serve ao propósito divino de formar uma comunidade, a Igreja. Não estamos diante de uma mera agregação de indivíduos, mas de uma família espiritual, unida pelo amor e pela graça divina.

A predestinação é, sem dúvida, um tema complexo e, por vezes, causa de controvérsias, especialmente em algumas teologias protestantes reformadas. Por exemplo, na obra “Institutas da Religião Cristã” (1536-1559), João Calvino articula o que conhecemos como doutrina da “dupla predestinação”, que consiste na crença de que Deus, em sua soberania e vontade eterna, predestinou algumas pessoas para a salvação eterna (a eleição) e outras para a condenação eterna (a reprovação). Essa ideia foi contestada por Jacobus Arminius, cujos seguidores são conhecidos como arminianos ou remonstrantes. Em resposta ao Arminianismo, foram definidos os chamados “Cânones de Dort” (1618-1619), que reafirmaram a doutrina calvinista da “dupla predestinação”.

A Igreja nos convida a contemplar a predestinação sob uma luz diferente. Nela, compreendemos que Deus, em Sua onisciência, traçou um plano eterno de salvação para todos os seres humanos. Embora Deus conheça todas as coisas, isto não implica que as ações humanas estão pré-determinadas. Ao contrário, Deus nos concedeu o dom precioso do livre-arbítrio.

Essa “predestinação para a adoção”, como podemos chamá-la, é uma decisão eterna e soberana de Deus. Contudo, não anula nosso livre-arbítrio nem desconsidera nossa cooperação com a graça divina. Assim, temos um belo equilíbrio entre a soberania divina e a liberdade humana.

Afirmar que Deus determina, antecipadamente, os condenados, contraria nosso entendimento da misericórdia divina e do livre-arbítrio humano. Isso sugere que nossas ações - e, consequentemente, nosso compromisso moral e espiritual - não teriam qualquer efeito real sobre o destino final de nossas almas. Este pensamento se distancia, e muito, da imagem do Deus de amor e misericórdia revelada em Jesus Cristo. Como podemos conciliar a vida e o anúncio de Jesus com a ideia de uma predestinação incondicional e irreversível?

O próprio Paulo nos dá um exemplo do correto entendimento acerca da necessidade de se cooperar com a graça de Deus, ao escrever em 1Coríntios 9,27: “Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha eu mesmo a ser reprovado.” Paulo compreendia claramente que seus atos nesta vida tinham repercussão em seu destino eterno.

A obra “A Controvérsia Católica” (1594-1596), de São Francisco de Sales, dedica algumas páginas para refutar a doutrina calvinista da predestinação. Ele reitera, ecoando Paulo, que Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). Além disso, ele argumenta que a justiça divina seria contrariada pela ideia de que muitos são condenados independente de suas ações. Dessa forma, a salvação ou condenação de um indivíduo não pode ser entendida como algo que Deus impõe unilateralmente.

Ao considerar as implicações práticas e espirituais da aceitação da ideia de “dupla predestinação”, vemos que ela pode até mesmo desestimular os esforços missionários de evangelização. Se tudo está determinado, se nada realmente depende da resposta humana, somos levados a questionar: por que então se empenhar na evangelização? Qual seria o valor real de uma conversão?

Pense agora em Jesus e nos Apóstolos, cujas vidas foram inteiramente dedicadas à pregação do Evangelho. Teriam eles empreendido tamanhos esforços, teriam eles enfrentado perseguições e sofrimentos, se acreditavam que suas palavras e ações não teriam efeito sobre o destino eterno das pessoas que encontravam?

A missão evangelizadora de Jesus e dos Apóstolos reflete um profundo respeito pelo livre-arbítrio humano, uma convicção de que cada indivíduo tem a liberdade de responder afirmativa ou negativamente ao chamado de Deus.

* * *

Ao refletir sobre a vontade divina, Paulo usa o termo grego “eudokia”. Este conceito engloba a ideia de uma vontade primordial, intensa e resoluta. É uma combinação das palavras gregas “eu” (bom) e “dokia” (vontade, intenção), expressando um profundo compromisso com o bem-estar do outro. “Eudokia” é usada por Paulo para descrever o profundo anseio de Deus pela nossa salvação, um desejo de bem que precede todas as coisas. São João Crisóstomo diz que, de nós, Deus nada mais deseja do que nossa salvação.

A seguir, nos encontramos com as palavras “louvor, bênção e glória” harmonizadas dentro da doxologia, quase como sinônimos. Ao proferi-las, não estamos meramente expressando uma resposta emocional - estamos nos unindo ao testemunho da criação.

O louvor não é uma atividade isolada, mas uma extensão das boas obras que nos foram confiadas. Por conseguinte, ao cumprirmos estas obras, estamos, de fato, engrandecendo a glória divina através do louvor.

No Antigo Testamento, o título de “Amado” é comumente aplicado a Israel (cf. Dt 32,15; Is 44,2). No Novo Testamento, este título pertence a Cristo e, por meio Dele, é estendido a todos os que estão unidos em seu Nome (Mt 3,17; 17,5; 1Ts 1,4; Cl 3,12). Enquanto o patriarca Isaac abençoou apenas Jacó, o Pai celeste, em Cristo, estende a sua bênção a todos.


“Nele, e por seu sangue, obtemos a redenção e recebemos o perdão de nossas faltas, segundo a riqueza da graça, que Deus derramou profusamente em nós, abrindo-nos para toda a sabedoria e inteligência. Ele nos fez conhecer o mistério de sua vontade, segundo o desígnio benevolente que formou desde sempre em Cristo, para realizá-lo na plenitude dos tempos: recapitular tudo em Cristo, tudo o que existe no céu e na terra.” (vv. 7-10)

Na saga do Êxodo temos a grande libertação do Antigo Testamento, com destaque para as marcas do sangue do cordeiro (Dt 7,8; Ex 12,7.13). A simbologia da efusão do sangue permaneceu na cultura do povo eleito por meio do culto, com os sacrifícios de expiação (Lv 4 e 16). Dessa forma, a concepção de resgate normalmente é associada à libertação de escravos, como no episódio da libertação dos hebreus do Egito.

No contexto cristão, o resgate está associado ao pecado. Os pecadores são libertos pelo perdão divino, obtido por meio do sangue de Cristo (Hb 9,22). A salvação/libertação por meio do sacrifício único de Jesus contrasta com a cultura politeísta de Éfeso. Jesus não é UM caminho, mas O caminho. Jesus é o único princípio para anjos e homens, para as realidades terrestre e celeste, “visíveis e invisíveis”, pois Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Em suma, Jesus é o Senhor do Universo (Cl 1,15-20; Fl 2,9-11; Ef 1,19-23; Ap 19,16).

Wright (2020) vê na vida, morte e ressurreição de Jesus não apenas a reinterpretação, mas a realização mais profunda da jornada do Êxodo, onde os fiéis, uma vez libertos da escravidão do pecado, são conduzidos pelo deserto da vida em um êxodo definitivo, em direção à verdadeira Terra Prometida.

Na teologia paulina, o conceito de “mistério” é uma referência ao chamado divino aos gentios para se tornarem parte integrante de Israel, como referido em Romanos 9-11. Na carta aos Efésios, esse conceito é trabalhado sob a perspectiva da Igreja, que reúne ambos os povos (judeus e gentios). Além disso, o “mistério” também é um sinônimo de “projeto de Deus” - uma realidade anteriormente compreendida apenas em parte, mas agora plenamente revelada na pessoa e obra de Jesus. No coração desse mistério, encontra-se a unificação de todas as coisas em Cristo, o que constitui o advento da plenitude dos tempos.

As coisas do “céu e da terra” simbolizam o universo na sua totalidade, abrangendo o reino celeste e a realidade material, implicando que toda a criação está envolvida na execução do projeto de Deus. Paulo destaca que a obra redentora de Jesus não é apenas um evento histórico, mas também o centro e objetivo supremo da história da salvação e da integralidade da criação, ou seja, é a finalidade de toda a trajetória existencial do universo.

Para as comunidades da região de Éfeso, inseridas num contexto multicultural, marcado pelo sincretismo religioso e diversidade de ídolos, o conceito de Cristo como unificador de todas as coisas, num plano cósmico, possui um profundo significado. Cristo, ao integrar tudo em Si mesmo, estabelece-se como divindade suprema, acima de todos os deuses pagãos. Assim, o universo é concebido como um corpo coeso e integrado em Cristo, reforçando a ideia de que nada e ninguém existe neste mundo sem propósito ou sem sentido. Cada coisa acontece em seu devido tempo e com uma finalidade específica.

“Reencabeçar” é a tradução do termo grego “Anakephalaioo”, que só aparece duas vezes no Novo Testamento, em Romanos 13,9 e em Efésios 1,10. Ele é uma forma intensiva de “kephalaioo”, que significa “resumir” ou “reunir sob uma cabeça”. Em Romanos, é aplicado na explicação de que todos os mandamentos se resumem em amar o próximo como a si mesmo. Em Efésios, está relacionado com a ideia de reunir ou recapitular todas as coisas em Cristo.

A “sabedoria e inteligência” concedidas por Deus representam a habilidade para entender e incorporar os princípios evangélicos em nosso dia a dia, promovendo o crescimento na fé e uma vida em consonância com a vontade de Deus. Podemos também chamar a sabedoria de discernimento e, pensando dessa forma, entendemos que Deus nos dá a capacidade de escolher o que é certo/bom, distinguindo o que é verdadeiro do que é falso.

Quando Paulo fala da “plenitude dos tempos”, ele emprega o termo “pleroma”, que significa “plenitude”, “totalidade” ou “completude”, aludindo à totalidade do tempo ou à conclusão do plano divino para a criação. Em uma tradução mais literal, poderíamos dizer: “...visando à economia da plenitude (pleroma) dos tempos”. Aqui, “economia” indica a forma como Deus guia a história rumo à sua consumação.

O termo “pleroma” pode abarcar dois sentidos complementares. Inicialmente, está relacionado à “plenitude dos tempos”, quando Deus enviou Seu Filho, como mencionado em Gálatas 4,4 e 1Coríntios 10,11, referindo-se à encarnação de Jesus ocorrida no término do Antigo Testamento. Contudo, no contexto específico desta epístola, a “plenitude dos tempos” designa o tempo da Igreja, inaugurado com a ressurreição de Jesus. Em todo caso, a “plenitude dos tempos” é o próprio desígnio.


“Em Cristo, segundo o propósito daquele que opera tudo conforme a decisão de sua vontade, fomos feitos seus herdeiros, predestinados a ser, para louvor da sua glória, os primeiros a pôr em Cristo a esperança. Nele, também vós ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação. Nele acreditastes e fostes selados com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança, até o resgate completo e definitivo, para louvor da sua glória.” (vv. 11-14)

Nesses versículos, Paulo fala em “herança” em dois sentidos diferentes. No primeiro, quando afirma que “fomos feitos sua herança”, Ele faz alusão ao povo eleito, descrito no Antigo Testamento como “herança de Deus” (Dt 4,20; 9,26). Contudo, ao falar do Espírito Santo como “penhor da nossa herança”, o termo evoca a ideia da terra que Deus prometeu a Israel (Gn 12,1-7; 15,18-21; Ex 3,7-8; Dt 1,8; 3,18). Esta ideia, transposta para o Novo Testamento, identifica a Terra Prometida com a herança celeste. O povo como herdeiro em Cristo é um assunto familiar nas epístolas paulinas (cf. Rm 8,17; Gl 3,29; 4,7).

Wright (2020) ressalta que Paulo, ao se referir à herança do povo eleito, vislumbrava o mundo inteiro, restaurado pelo poder transformador do amor de Deus, que almeja um universo plenamente revitalizado, onde sua presença e graça tudo alcancem - paraíso e terra, unidos. Quando essa transformação surgir com Jesus ao centro, o povo de Deus receberá a tão desejada “herança” - um universo inteiro, renovado em Cristo. Esta é a promessa na qual se ancoram nossas esperanças. A nossa herança não é apenas a Terra ou uma Terra Prometida, mas a totalidade do universo. E nesse universo, enquanto aguardamos, habitamos o lugar privilegiado da Igreja.

Ao falar de judeus e gentios, Paulo alterna entre “nós” (judeus) e “vós” (gentios). Aqui, Paulo reforça a necessidade fundamental de se estar em comunhão com Jesus (“Nele”) para ter acesso à “herança” da salvação. A insistência do Apóstolo possivelmente decorre do público a quem se direcionava: os cristãos convertidos do paganismo que, até então, não partilhavam de nenhuma “herança” na relação com o Deus de Israel. Paulo reconhece a grandiosidade do plano salvífico de Deus ao cumprir as promessas feitas ao povo judaico através de Jesus, mas também percebe um prodígio ainda maior no chamado dos gentios para compartilhar dessa mesma promessa.

A “Palavra da Verdade”, o Evangelho, é quem revela para nós que a salvação é um dom de Deus. Dessa forma, a união dos povos na Igreja acontece por meio da pregação da Palavra de Deus (Rm 10,17). Quando a Palavra é acolhida, Deus sela o crente com o Espírito Santo prometido (cf. Gl 3,14).

O “selo” indica propriedade e declara a pertença do fiel a Deus. Ademais, “selo/marca” também alude a proteção e autenticidade (Ez 9,4-6; Ap 7,4), ilustrando a vigilância de Deus sobre Seu povo e como os cristãos se transformam em verdadeiros (autênticos) filhos de Deus à medida que vivem em conformidade com o Evangelho. Assim, Paulo estabelece um paralelo entre o “selo” da circuncisão que incorporava o crente na Antiga Aliança como parte do povo de Israel, e o “selo” do Espírito Santo no batismo que, na Nova Aliança, incorpora os cristãos à Igreja (cf. Rm 4,11-22; Ef 4,30).

O Espírito Santo nos é dado como penhor, representando a presença atual e completa do mistério de Deus. É a realidade que garante a futura concretização da promessa divina (2Cor 1,22; 5,5; Rm 8,23). Enquanto aguardamos a plena posse de nossa herança celestial, o Espírito continua atuante até a consumação dos tempos, momento em que os fiéis desfrutarão da libertação do pecado e da morte, e vivenciarão a alegria da eterna comunhão com Deus. Para os convertidos do paganismo, esta é uma mensagem encorajadora - um poderoso e firme reforço espiritual, dado o desafiador chamado para viver uma vida tão diferente da que estavam acostumados. A vida cristã, com sua proposta tão desafiadora para o mundo em que vivemos, só é suportável pela força e ação do Espírito Santo.

Em suma, poderíamos resumir o esquema do hino da seguinte maneira: Deus elegeu, predestinou, redimiu, revelou o mistério do seu plano salvífico e qual herança nos daria e, para garantir que cumpriria sua promessa, nos deu o Espírito Santo como penhor. O hino de Efésios 1,3-14, juntamente com 3,20-21, dita o clima de louvor da primeira parte da carta.


Reflexão

1) Paulo é enfático ao localizar nossas verdadeiras riquezas no plano espiritual. É verdade que existem riquezas materiais, mas também é certo que elas nada valem diante da perspectiva da morte e da vida eterna. Os bens materiais devem ser usados para promover os valores cristãos da fraternidade e da caridade. Tendo muito ou pouco, sempre podemos usá-los para dizer ao mundo que Cristo vive e que nossa esperança está para além desta vida que passa. Como é sua relação com os seus bens?

2) Hoje vemos várias propostas “salvadoras” na sociedade, quase todas com fundo comercial. As propagandas prometem mais saúde, vitalidade, rejuvenescimento e tudo quanto se pode oferecer para explorar o desejo humano de se perpetuar nesta vida. Sem contar as ideologias políticas, que nos prometem o céu na terra ou que fazem do dinheiro o deus a ser buscado e adorado. Em meio a tantos apelos comerciais e ideológicos, o que fazer para se manter são, vendo com clareza a meta para a qual somos chamados?

3) Pare um pouco e imagine o maior presente que você poderia receber. Multiplique isso infinitamente e você começará a entender o que Paulo está tentando nos dizer em Efésios 1,3-14. Ele nos conta que, em Cristo, o Pai derramou sobre nós todas as bênçãos. Isso mesmo: todas! Agora, imagine-se vivendo na época do Império Romano, onde a cidadania romana era o bilhete dourado para prestígio e privilégios. Contudo, Paulo nos conta uma história diferente: a verdadeira cidadania, a mais gloriosa de todas, não é a romana, é a cidadania celestial! Somos cidadãos do Céu! Esse hino serve como um lembrete inspirador da nossa verdadeira identidade e dignidade como cristãos. Então, da próxima vez que você se sentir pequeno ou sem importância, lembre-se das palavras de Paulo: Você é amado! Você é abençoado! Você é um cidadão do Céu!

4) Deus, que nos chama à salvação, nos dá a segurança do auxílio do Espírito Santo em nossa caminhada. Essa garantia deve gerar em nós confiança e gratidão... Numa época marcada por tantas opiniões conflitantes e informações cada vez mais rápidas, peça ao Espírito o dom da sabedoria, a graça do discernimento, pois precisamos sempre mais silenciar, desacelerar e aprender a buscar a sabedoria de Deus - a sabedoria da cruz.


Referências

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