Autoria, destinatários e bênção inicial da carta aos Efésios (Ef 1,1-2)

Por: - 29 de agosto de 2023

Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)

 

Paulo é identificado como o autor em dois momentos da carta (1,1 e 3,1). Os testemunhos em favor da autenticidade de Efésios remontam ao século II, desde Irineu e do Códice Muratoriano, e continuam ininterruptamente até meados do século XVIII. É provável que o texto da Carta aos Efésios tenha sido uma carta circular enviada às comunidades das cidades próximas a Éfeso.


Contexto

A Carta aos Efésios se destaca entre as epístolas paulinas como um retrato espiritualmente denso e universal da fé cristã. Diferente dos outros escritos paulinos, que tratam de desafios específicos das respectivas comunidades destinatárias, essa carta brilha por seu alcance amplo, tornando-a fundamental para as comunidades cristãs em todos os tempos e lugares.

A figura central e tema dominante da epístola são enfatizados logo de cara, com os dois primeiros versículos citando Jesus Cristo três vezes. Seu estilo expositivo habilmente tecido proporciona uma visão tanto do dogma quanto da práxis cristã, consolidando-se como uma síntese eloquente da Cristologia paulina e de sua doutrina sobre o Corpo Místico e a Igreja.

A questão da autoria dessa obra tem sido uma questão controversa no debate acadêmico. Alguns estudiosos afirmam que a carta foi escrita por um discípulo ou seguidor de Paulo, categorizando-a como deuteropaulina - uma carta que, embora carregue a influência de Paulo, foi escrita após sua morte. No entanto, a crença predominante entre os estudiosos e sustentada pela Igreja é a de que Paulo é o verdadeiro autor.


Comentário

“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus, aos santos ________ e fiéis em Cristo Jesus. Graça e paz a vós da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” (vv. 1-2)

 

Destinatários

Notou algo estranho na passagem bíblica acima? Certamente na sua Bíblia deve ter a expressão “em Éfeso” ou, como na Bíblia de Jerusalém, a expressão “aos santos e fiéis em Cristo Jesus?”, mas nós optamos por deixar o espaço em branco para que você compreenda a questão dos destinatários da carta aos Efésios.

Marcião e outros estudiosos afirmam que a carta tinha como destinatária a comunidade de Laodicéia, à qual se refere Colossenses 4,16: “Depois que vocês lerem esta carta, façam que seja lida também na igreja de Laodicéia. E vocês, leiam a de Laodicéia”. Essa forma de leitura compartilhada de cartas indica que Paulo escrevia “cartas circulares”.

O problema em afirmar que a carta teve como destino apenas a comunidade dos efésios reside no fato de que Paulo passou 3 anos na cidade (At 20,31), tempo suficiente para conhecer muita gente e, sobretudo, as especificidades da comunidade efésia. Porém, a carta possui um tom impessoal, chegando o autor a dizer que “ouviu falar da fé deles” (1,15), além de não saudar alguém em específico, o que é fora dos padrões das cartas tidas como autênticas. Em Efésios 3,1 Paulo parece se dirigir a várias pessoas que não o conhecem pessoalmente e nem o seu trabalho, indicando um desconhecimento mútuo.

Curiosamente, em três dos melhores e mais antigos manuscritos de Paulo que possuímos (Papiro 46 e os códices Vaticano e Sinaítico), datados dos séculos 3 e 4 d.C., a expressão “em Éfeso” não aparece. Os manuscritos conservam um espaço em branco no local onde deveria ter o nome dos destinatários. No entanto, já desde o século 3, a epístola está vinculada à tradição da Igreja em Éfeso.

É provável que o texto da Carta aos Efésios tenha sido uma carta circular enviada às comunidades das cidades próximas a Éfeso. Dessa forma, várias cópias teriam sido feitas para que todas as comunidades cristãs da região entrassem em contato com sua mensagem. Nesse caso, seria mais fácil ter escrito o nome de cada comunidade em suas respectivas cópias. É mais provável que uma única carta tenha sido escrita, a princípio sem cópias, com o espaço em branco onde deveria ter o destinatário para que, ao circular por todas as comunidades, cada uma lesse seu nome quando chegasse no espaço em branco. Essa lacuna serviria para que cada comunidade se considerasse destinatária da carta durante sua leitura comunitária. Portanto, o bendito espaço “em branco” não significa ausência de destinatário, mas o fato de haver vários. A comunidade de Éfeso, por sua posição de destaque em relação às demais, deve ter, ao fim da circulação da carta, custodiado a mesma, conservando-a com o seu nome.

 

Local de redação e circunstâncias da carta

Ao mergulharmos na trama por trás da Epístola aos Efésios, somos atraídos pelo turbilhão de provações do Apóstolo Paulo, marcado especialmente por suas prisões. O livro dos Atos desenrola um mapa de adversidades: desde uma estadia efêmera nas grades frias de Filipos (Atos 16,23-40), um interlúdio de dois anos capturado entre Jerusalém e Cesaréia (21,27-26,32), até seu desterro para Roma, onde, mesmo prisioneiro, desfrutava de uma espécie de “liberdade vigiada”, onde permanecia acorrentado a um soldado romano (27,1-28,30).

Alguns estudiosos propõem uma lacuna na narrativa de Lucas, sugerindo uma importante omissão: uma prisão não documentada de Paulo em Éfeso. Mesmo que o próprio Paulo não confirme tal encarceramento, ele derrama tinta sobre uma série de tribulações ali enfrentadas (1Cor 15,32; 2Cor 1,8-10). A suposição de uma detenção em Éfeso durante sua terceira viagem missionária (53-57 d.C.) poderia justificar os três anos de permanência de Paulo naquela cidade.

Se tomássemos Lucas como nosso único guia, Cesaréia (59-60 d.C.) ou Roma (60-62 d.C.) se apresentariam como palcos mais prováveis para a escrita de Efésios. Na maioria dos comentários, prevalece a opinião de que foi em Roma.

 

Remetente

O autor declara ser um prisioneiro, não de homens, mas “de Cristo, no Senhor” (cf. 3,1 e 4,1). O termo grego “desmios”, usado para caracterizá-lo, evoca uma imagem forte de cativeiro. Ele descreve a si mesmo como um cativo de sua fé, uma ideia que é ecoada em Filemon 1,9. Em Colossenses e Filipenses, a imagem do cativeiro é enfatizada com a menção de “cadeias” (“desmoi”), ressaltando a fidelidade do Apóstolo, mesmo em meio a adversidades (cf. Fl 1,7.13-14.17; Cl 4,18).

A maioria dos estudiosos concordam que a carta foi escrita durante o primeiro encarceramento de Paulo em Roma, entre 60-62 d.C., após sua detenção em Jerusalém e subsequente transferência para Cesareia (At 21-26). Paulo, de fato, invocou seu direito de apelar ao imperador romano e foi transportado para Roma, onde permaneceu sob prisão domiciliar (At 25,11-12; 28,16-31).

É intrigante, no entanto, que Paulo, apesar de afirmar sua condição de prisioneiro, nunca revele o local de sua detenção. Esta omissão levou alguns críticos a questionar a autenticidade da carta, sugerindo que ela foi escrita mais tarde, talvez entre 80-90 d.C., por algum discípulo do Apóstolo.

Bortolini (2019, p. 141) cita os principais motivos para a dúvida sobre a autoria de Efésios: tipo de linguagem, estilo, o uso de determinadas palavras estranhas ao pensamento de Paulo, bem como a ausência de palavras comuns e frequentes nas cartas consideradas autenticamente paulinas.

Paulo é identificado como o autor em dois momentos da carta (1,1 e 3,1). Os testemunhos em favor da autenticidade de Efésios remontam ao século II, desde Irineu e do Códice Muratoriano, e continuam ininterruptamente até meados do século XVIII. As dificuldades surgiram a propósito de certas questões de gramática e estilo, mas foram tomando corpo na medida em que se definia o “verdadeiro paulinismo”: a doutrina da justificação pela fé, acompanhada de um confronto com o judeu-cristianismo petrino. Efésios falha nesses dois pontos, sobretudo no segundo, ao proclamar a queda do muro que separava judeus e gentios (Ef 2,14).

Sobre a omissão do tema da justificação pela fé sem as obras da lei, Bosch (2002, p. 378) pontua que Efésios se aproxima da linguagem paulina da justificação em três pontos:

Primeiramente, a palavra dikaiosynê, traduzida como “justiça”, é encontrada em Ef 4,24, 5,9 e 6,14, mesmo que ainda estejam ausentes outros termos derivados da mesma raiz. Em seguida, o verbo pisteuó, ou “crer”, é utilizado em Ef 1,13.19. O substantivo derivado pistis, ou “fé”, aparece oito vezes, sendo que em três delas (Ef 2,8; 3,12.17; cf. CI 2,12), é usada a expressão dia (tês) pistéos (“pela fé”), também característica do estilo paulino (Rm 1,12; 3,22.25.27.30s; 4,13; 2Cor 5,7; Gl 2,16; 3,14.26; F1 3,9). Por fim, em Ef 2,9, Bosch destaca a presença da fórmula ouk ex ergôn (“não pelas obras”), elemento central na doutrina paulina da justificação (cf. Gl 2, 16; 3,2.5.10; Rm 3,20.27s; 4,2.6; 9,11.32; 11,6).

Além disso, a Epístola possui características únicas que os estudiosos chamam de "todos os erros de Paulo", quais sejam: ausência perceptível de ordem, falta de sinais de pontuação e uma proclividade para o uso excessivo de sinônimos e genitivos. Contrariamente ao esperado, essas peculiaridades não minam a autenticidade; elas parecem, na verdade, fortalecê-la.

Embora seja notável que o estilo de Efésios se desvie das demais cartas atribuídas a Paulo, concordamos com Wright (2020, p. 16) de que a variação de estilo é comum entre os escritores, e Paulo não seria uma exceção. Essa mudança não nega a autenticidade, mas revela um retrato mais matizado e fascinante do autor, que soube adaptar sua linguagem e estilo a diferentes situações e destinatários.

A questão da autenticidade da Epístola aos Efésios, fonte de múltiplas interpretações, continua a atrair a atenção dos estudiosos. Apesar da controvérsia em torno da autoria e do público-alvo, em nosso estudo faremos referência ao autor como sendo Paulo e às comunidades da Ásia como sendo os “Efésios”. A autoria, seja de Paulo ou de um discípulo, não ofusca a relevância perene da carta e de sua mensagem.

 

Bênção inicial

Paulo deseja graça e paz aos seus destinatários. A graça, como dom gratuito de Deus, dá ao cristão o acesso à salvação e à vida eterna. A paz não é ausência de problemas, mas o estado de reconciliação com Deus alcançado por Cristo em sua Cruz e Ressurreição. O shalom (a paz) é também (e sobretudo) a plenitude da vida, consequência da graça. Ao desejar tais dons, o Apóstolo pede implicitamente que os cristãos vivam conscientes das bênçãos que receberam e entendam que seus esforços devem ser empenhados em viver conforme a dignidade concedida a eles por Deus. Paulo relaciona o cristão com a Trindade, a comunidade perfeita.

Paulo chama seus irmãos de santos e fiéis, talvez não como uma realidade consumada, mas como um desejo para a vida deles, fruto da graça e paz de Deus. Aqueles que ouvissem a leitura da carta, poderiam sentir-se chamados a uma vida santa e fiel, de acordo com o plano de Deus para cada um.

 

Reflexão

1) Uma das curiosidades sobre a carta aos Efésios é a ausência de menção a um destinatário específico. Falamos bastante sobre o espaço “em branco” que existe nos principais manuscritos antigos. Por isso, propomos que a leitura espiritual do texto seja feita com o seu nome no lugar do destinatário. Paulo escreveu uma correspondência especial para você. Qual é a sua resposta ao Apóstolo?

2) Paulo, ao se autodenominar “Apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus”, reconhece que sua autoridade não emana dele mesmo, mas de um chamado divino. Ciente de seu papel na missão de evangelização dos povos, ele destaca a importância do compromisso e da submissão à vontade de Deus no apostolado. Sua consciência nos lembra de uma lição importante: é fácil desviar-se do caminho quando a popularidade e o reconhecimento social são alcançados. Muitos, após anunciarem a Cristo e ganharem notoriedade, acabaram por priorizar a autopromoção em vez de continuar proclamando a Palavra. A recordação do nosso chamado inicial de serviço e evangelização deve sempre permanecer viva em nossa mente, evitando os desvios para os caminhos de autoexaltação.

3) Ao desejar graça e paz, Paulo não apenas suplica, mas também instiga todos a vivenciar essas bênçãos divinas, conscientes de que a salvação e a vida eterna são presentes inestimáveis de Deus. Somos chamados a perceber as graças cotidianas - como acordar, ter um lar, família e sustento, que são frutos da capacidade de trabalho que Deus nos concede. Contudo, a lembrança daqueles que carecem do básico para sobreviver deve gerar em nós a urgência da caridade, mesmo nos pequenos gestos, que são capazes de atenuar ou mesmo resolver as mais diversas situações enfrentadas por nossos irmãos. Não devemos ter mãos estendidas apenas para receber, mas também para compartilhar nossas bênçãos com os mais necessitados.

4) Paulo chama seus destinatários de “santos e fiéis”, muito mais como um desejo do que como uma constatação. Ele confia no poder transformador da misericórdia divina para moldar o futuro de seus irmãos, incentivando-nos a fazer o mesmo: enfatizar a graça (ação de Deus) sobre o pecado (ação humana) em nossas relações. Desejo-lhe que em suas palavras prevaleça a bênção. Em vez de maldizer, abençoe, e em vez de criticar, oriente com caridade. Nossas palavras têm a capacidade de desanimar ou inspirar os outros. Ao elogiar, sorrir e abençoar mais, você será o primeiro a colher os frutos de tal postura.


Referências

BORTOLINI, José. Como ler a Carta aos Efésios: o universo inteiro reunido em Cristo. São Paulo: Paulus, 2001. (Série “Como Ler a Bíblia”).

______. Como ler a Carta aos Colossenses: reconstruir a esperança em Cristo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1996. (Série “Como ler a Bíblia”).

______. Literatura Paulina. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019. (Conheça a Bíblia - Estudo Popular; 6)

BOSCH, Jordi Sánchez. Escritos Paulinos. Tradução de Alceu Luiz Orso e Jaime Sánchez Bosch. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2002. - (Introdução ao estudo da Bíblia; v. 7)

COMBLIN, José. Epístola aos Efésios. Petrópolis e São Leopoldo: Vozes e Sinodal, 1987. (Comentário Bíblico NT).

COTHENET, Edouard. São Paulo e o seu tempo. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1984. (Cadernos bíblicos; 26)

DANIEL-ROPS, Henri. São Paulo: conquistador de Cristo. Tradução de António Carlos de Azeredo. Porto: Civilização Editora, 2006.

HAHN, Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Dennis. As cartas de São Paulo aos gálatas e aos efésios - Cadernos de estudo bíblico. Tradução de Giuliano Bonesso. Campinas, SP: Ecclesiae, 2017.

LOCKMANN, P. Homem e mulher: papéis e funções à luz de Colossenses e Efésios. Estudos Bíblicos, São Paulo, v. 23, n. 85, p. 80–89, 2022. Disponível em: https://revista.abib.org.br/EB/article/view/811. Acesso em: 10 dez. 2022.

PERONDI, Ildo; ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Apocalipse: a força da resistência dos pobres. São Paulo: Paulus, 2021.

TRICOT, Alphonse Eile. São Paulo: Apóstolo dos Gentios. Tradução de Pablo Pinheiro da Costa. Dois Irmãos, RS: Minha Biblioteca Católica, 2019.

WRIGHT, N. T. Paulo para todos: cartas da prisão: Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon. Tradução de Marson Guedes e Marília Arcosi Peçanha. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.

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