Por que existem diferenças entre as Bíblias?

Por: - 28 de setembro de 2024


As pessoas frequentemente nos perguntam por que há tantas diferenças entre as Bíblias. Se ela é a Palavra de Deus, por que não existe um único texto em cada língua? A pergunta é pertinente e a resposta é extensa. Vamos tentar explicar, começando pela raiz do problema.

Os dois livros de Deus

Santo Agostinho afirma que Deus escreveu dois livros. O primeiro foi a vida. De fato, a vida é um livro aberto, onde podemos “ler” a mensagem de Deus, admirar a beleza da Criação e descobrir o seu projeto. Deus criou a vida para ser bela. No entanto, com o passar dos anos, a vida começou a ser desvalorizada e desrespeitada. Em seu infinito amor, Deus escolheu um povo, com o qual fez história, e revelou seu projeto de amor. Então veio o segundo livro: a Bíblia. A Bíblia foi dada para ajudar a vida. Ela nasceu ligada à vida e para que o povo tivesse mais vida.

 

Deus escolhe um povo

Deus chamou um povo e com ele fez história. Ele caminhou com seu povo, e o povo caminhou com seu Deus. Essa longa história teve início com os nossos pais e mães da fé (Abraão e Sara; Isaac e Rebeca; Jacó, Lia e Raquel). A eles, Deus fez a Promessa: terra, descendência e bênção. Em seguida, vieram as doze tribos, que mais tarde caíram na escravidão no Egito, clamando a Deus por libertação. Deus viu o sofrimento, ouviu o clamor e desceu para libertar o povo (Ex 3,7-10), chamando Moisés para conduzi-los à Terra Prometida.

Após uma longa experiência no deserto, o povo começou a viver uma vida bonita, em forma comunitária (tribalismo). Depois veio a monarquia, acompanhada de profetas que falavam em nome de Deus. Contudo, a infidelidade do povo e a má administração dos reis os afastaram do projeto divino. O reino se dividiu: Israel, no norte, com Tersa e depois Samaria como capital, e Judá, no sul. Israel foi conquistado pela Assíria em 721 a.C., e Judá pela Babilônia em 586 a.C. No exílio babilônico, o povo experimentou o sofrimento de viver longe de sua terra. Sofreu também o povo que ficou dominado na terra. Contudo, a mão do Deus Redentor permitiu o retorno do povo à sua terra. Novos profetas surgiram e alguns começaram a anunciar que Deus ainda tinha um projeto para o seu povo: a vinda do Messias.

 

A Bíblia em hebraico

A história do Antigo Testamento se estendeu por aproximadamente dois mil anos. Primeiro, o povo viveu essa história; depois, contaram a história vivida, acrescentando novos fatos; em seguida, começaram a escrever os primeiros textos; e, por fim, outros autores deram a redação final a esses livros. Em todos esses momentos, consideramos que houve a inspiração de Deus. Portanto, o texto bíblico é o resultado da ação conjunta de Deus e de seu povo. Os livros foram inspirados por Deus e escritos por seres humanos. O povo de Deus, que vivia em Israel, falava hebraico ou aramaico e, por isso, escreveu a Bíblia em hebraico.

 

A Bíblia em grego (LXX ou Septuaginta)

Após o retorno do exílio, muitos hebreus viviam fora de Israel, seja exilados, seja por emigração. Nessa época, a língua grega era amplamente falada em quase todo o mundo. Os hebreus que estavam fora de Israel enfrentavam dificuldades para acessar o texto bíblico escrito em hebraico, especialmente seus descendentes, que estudavam e falavam o grego. Por esse motivo, em Alexandria, no Egito, cerca de 300 anos antes de Cristo, alguns escribas hebreus decidiram traduzir a Bíblia para o grego. Segundo a tradição, 72 escribas vindos de Israel (seis de cada tribo) se reuniram em celas separadas e, em 72 dias, cada um produziu uma cópia da tradução. No final, os textos eram idênticos. Absolutamente iguais. Assim, essa tradução ficou conhecida como LXX (Setenta) ou Septuaginta. Entretanto, sabemos que a história não foi exatamente assim. A tradução para o grego foi realizada por muitas mãos. Alguns tradutores conheciam bem tanto o hebraico quanto o grego, mas alguns livros receberam péssimas traduções para o grego. Muitas vezes, tiveram que explicar alguns termos, interpretar expressões e adaptar o texto para torná-lo compreensível ao público de língua grega.

Os hebreus que viviam em Israel não aprovaram a tradução para o grego. Segundo eles, Deus “falava” apenas em hebraico. Por outro lado, os hebreus que moravam fora de Israel gostaram da tradução, pois podiam ler, estudar e viver a Palavra de Deus em sua nova língua e usá-la nas liturgias e celebrações. Além disso, foram além e reconheceram que alguns livros escritos fora de Israel também faziam parte da história do povo de Deus e, portanto, eram inspirados por Ele. Foi assim que incluíram na Bíblia os livros de Eclesiástico, Sabedoria, Tobias, Judite, Baruc, 1 e 2 Macabeus, além de alguns trechos de Daniel, Ester e uma Carta de Jeremias.

Para os judeus em Israel, isso foi considerado um absurdo, pois, segundo eles, Deus só se revelava em hebraico. Assim, mantiveram a sua Bíblia “menor”, apenas em hebraico. Enquanto isso, os judeus que viviam fora de Israel adotaram uma Bíblia “maior” (1), em grego. Após a destruição do Templo de Jerusalém, em 70 d.C., o judaísmo que sobreviveu definiu que a Bíblia hebraica, a “menor”, seria a única verdadeira para eles. O encontro no qual ocorreram essas discussões e que deu início ao processo de definição do cânon judaico, embora sem formalizar seu fechamento, ficou conhecido como “Sínodo de Jamnia”, por volta de 90 d.C., sendo marcado por debates que ajudaram a consolidar o judaísmo rabínico, mas sem uma decisão conciliar definitiva, já que o processo foi gradual e se estendeu por séculos.

Jesus viveu em Israel, onde se falava hebraico e aramaico. Ele estudou a Bíblia e, quando ia às sinagogas, lia os trechos bíblicos. Como estava em Israel, sempre utilizava a Bíblia Hebraica “menor”.

 

Novo Testamento em grego

Jesus pregou e anunciou sua mensagem em aramaico e hebraico, mas o Novo Testamento foi escrito em grego. Os Apóstolos começaram a anunciar a Boa Nova de Jesus em Israel e, depois, espalharam-se por todo o mundo. Nessas regiões, a língua falada e escrita era o grego, por isso utilizaram o Antigo Testamento na versão grega, ou seja, a Bíblia “grande”. Isso demonstra que Deus revelava sua mensagem em qualquer língua que desejasse. O Novo Testamento cita o Antigo Testamento cerca de 350 vezes, sendo que pelo menos 300 dessas citações são da versão grega (LXX).

 

A Vulgata (Bíblia em latim)

No século V, o grego deixou de ser a língua predominante e o latim passou a ser a língua mais falada e escrita. A Igreja, que anunciava a Boa Notícia do Antigo Testamento e de Jesus, precisou traduzir a Bíblia para o latim, a língua da época. Algumas versões em latim surgiram. Em 382, o Papa Dâmaso pediu a São Jerônimo que traduzisse os Evangelhos. São Jerônimo, então, foi morar em Jerusalém e Belém, onde conheceu um famoso rabino que o ensinou hebraico. Assim, ele começou a traduzir a Bíblia Hebraica (Antigo Testamento). Tudo correu bem enquanto traduziu a Bíblia “pequena”. O rabino (que era de Israel), no entanto, opinou que os livros do Antigo Testamento escritos em grego não deveriam ser traduzidos. São Jerônimo ficou confuso, mas, consultando a Igreja, decidiu incluir esses livros na tradução latina, conhecida como Vulgata (do latim “vulgar”, sem conotação pejorativa, mas “vulgar” no sentido de “popular”, “de uso comum” ou “fácil”). Assim, a Bíblia em latim também ficou “grande”, como a versão grega. O tempo foi passando, e em toda a Igreja usava-se a Bíblia “grande”.

 

A tradução de Lutero

No século XVI, Martinho Lutero deu início à Reforma Protestante. Sendo alemão, Lutero acreditava que o povo deveria ler a Bíblia em sua língua materna, por isso traduziu a Bíblia para o alemão, com muita dedicação. No entanto, ele seguiu a versão hebraica “pequena” e ficou em dúvida quanto aos livros do Antigo Testamento escritos em grego, decidindo traduzir somente os livros da Bíblia “pequena” (2). O Novo Testamento não apresentou problemas, pois sua tradução permaneceu idêntica ao texto utilizado pela Igreja Católica. Dessa forma, a Bíblia traduzida por Lutero seguiu a versão “pequena” (no que se refere ao Antigo Testamento), enquanto a Bíblia traduzida pela Igreja Católica manteve a versão “grande”. Logo após, surgiram traduções da Bíblia para diversas línguas. As traduções católicas eram “grandes”, enquanto as traduções protestantes eram “pequenas”.

 

Conclusão

Portanto, é importante conhecer bem essa história. Dizer que os Protestantes removeram sete livros da Bíblia é incorreto, assim como afirmar que os Católicos acrescentaram sete livros. A diferença entre as Bíblias é fruto de uma longa história e das opções feitas durante as traduções para as línguas modernas. Hoje, Católicos e Protestantes colaboram de forma ecumênica em muitos projetos relacionados à Bíblia.

 

* * *

 

As Bíblias traduzidas em português

 

a) Bíblia de Jerusalém

É o melhor e mais seguro texto bíblico para estudo. Trata-se de uma tradução muito fiel, realizada a partir dos textos originais por biblistas altamente qualificados. Embora não seja uma versão popular, por priorizar a precisão dos textos originais, é muito utilizada em Seminários, incluindo alguns protestantes. Possui boas notas de rodapé e informações sobre os textos paralelos, além de uma boa linha do tempo e da história ao final dos volumes, e boas introduções a cada livro da Bíblia. Em 2002, passou por uma revisão geral que aprimorou ainda mais o texto.

 

b) Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Essa é uma boa tradução, também realizada por biblistas sérios e competentes. Sua linguagem é bem popular, tornando-se um texto fácil e agradável de ler. Traduzida recentemente, é recomendada para o povo. As introduções a cada livro são boas, mas as notas de rodapé, embora presentes, nem sempre são boas.

 

c) Bíblia da CNBB

É uma tradução recém-editada, com um texto de boa qualidade e linguagem acessível. Seu foco é litúrgico, sendo destinada ao uso nas celebrações litúrgicas em toda a Igreja do Brasil. Um exemplo de tradução em 2Tm 3,17: “...a fim de que toda pessoa seja útil para a boa obra”. No original grego, o termo é “anthropos”, que significa “homem”. Contudo, como a maioria dos participantes das celebrações são mulheres, a Bíblia litúrgica opta por traduzir “pessoa”, visando uma melhor adaptação ao contexto. Em contrapartida, uma Bíblia de estudo deve manter a tradução literal como “homem”.

 

d) TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia)

Essa tradução foi realizada por um grupo composto por católicos, protestantes e hebreus, buscando um equilíbrio entre as tradições. Por isso, o texto procura ser conciliatório, às vezes difícil. Além disso, a ordem dos livros da Bíblia pode não ser a mesma com a qual estamos acostumados. No entanto, a TEB traz boas introduções e notas de rodapé de qualidade.

 

e) Bíblia Ave-Maria

Uma das traduções populares mais antigas. No entanto, a versão em português não foi traduzida diretamente dos textos originais, mas teve um papel importante, pois foi uma tradução popular, fácil e que foi a mais usada pelo povo durante muito tempo. Dada a sua idade e os avanços nos estudos bíblicos, esta versão merecia uma atualização, corrigindo algumas palavras e expressões. Existe também uma versão para estudo, que contém boas notas de rodapé.

 

f) Bíblia Mensagem de Deus (edições Loyola)

Essa tradução apresenta um bom texto e é fiel ao original, embora não seja muito conhecida.

 

g) Bíblia “O Pão Nosso” (Vozes)

Também oferece um bom texto, mas possui poucas notas de rodapé e é pouco conhecida.

 

h) Bíblia do Peregrino

Tradução feita pelo renomado biblista L. Alonso-Schökel e sua equipe. O texto é de boa qualidade, embora, em alguns momentos, possa ser um pouco confuso. Possui muitas notas de rodapé e, geralmente, custa mais caro.

 

i) Bíblias Protestantes

A maioria das Bíblias protestantes segue a tradução feita por João Ferreira de Almeida, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Essas versões foram traduzidas diretamente dos textos originais e são reconhecidas por sua fidelidade. No entanto, geralmente possuem poucas notas de rodapé e não trazem introduções aos livros. Para nós católicos, falta nelas os sete livros da Bíblia “grande” do Antigo Testamento, que também consideramos inspirados. A versão mais recomendada é a Almeida Revista e Atualizada (ARA).

 

j) A Bíblia das Testemunhas de Jeová

Essa versão é conhecida por manipular e traduzir incorretamente diversos textos, especialmente aqueles que se referem à divindade de Jesus.

 

l) Outras Bíblias

Recomenda-se não comprar Bíblias de vendedores porta a porta, mesmo aquelas que possuam ilustrações bonitas. Geralmente, essas versões são mais caras, possuem textos de péssima qualidade, que normalmente não são traduzidas dos originais e nem por especialistas. Muitas vezes, são edições que encalham em livrarias.

 

__________

(1) Os livros que estão a mais na Bíblia “grande” são chamados de Deuterocanônicos (para os Protestantes, são considerados Apócrifos). O uso dos termos “pequena” e “grande” não implica que uma Bíblia seja melhor ou superior à outra, mas apenas que uma contém mais ou menos livros, resultando em uma versão mais “grossa” ou “fina”.

 (2) Há quem pense que Lutero estava tão focado em traduzir o Novo Testamento que por isso optou por traduzir apenas os livros da Bíblia “pequena” (Antigo Testamento) e, logo em seguida, iniciou a tradução do Novo Testamento. Outra hipótese sugere que os problemas estejam relacionados aos livros dos Macabeus. No entanto, é certo que Lutero tinha grande apreço por esses livros, afirmando que eram muito importantes e recomendando que fossem lidos e estudados.

 

__________

Imagem: foto de Ítalo de Oliveira.

POSTAGENS RELACIONADAS

0 comments