Por que existem diferenças entre as Bíblias?
As pessoas frequentemente nos perguntam por que há tantas diferenças entre as Bíblias. Se ela é a Palavra de Deus, por que não existe um único texto em cada língua? A pergunta é pertinente e a resposta é extensa. Vamos tentar explicar, começando pela raiz do problema.
Os dois livros de Deus
Santo Agostinho afirma que Deus escreveu dois livros. O
primeiro foi a vida. De fato, a vida é um livro aberto, onde podemos “ler”
a mensagem de Deus, admirar a beleza da Criação e descobrir o seu projeto. Deus
criou a vida para ser bela. No entanto, com o passar dos anos, a vida começou a
ser desvalorizada e desrespeitada. Em seu infinito amor, Deus escolheu um povo,
com o qual fez história, e revelou seu projeto de amor. Então veio o segundo
livro: a Bíblia. A Bíblia foi dada para ajudar a vida. Ela nasceu ligada à
vida e para que o povo tivesse mais vida.
Deus escolhe um povo
Deus chamou um povo e com ele fez história. Ele caminhou com
seu povo, e o povo caminhou com seu Deus. Essa longa história teve início com os
nossos pais e mães da fé (Abraão e Sara; Isaac e Rebeca; Jacó, Lia e Raquel). A
eles, Deus fez a Promessa: terra, descendência e bênção. Em seguida,
vieram as doze tribos, que mais tarde caíram na escravidão no Egito, clamando a
Deus por libertação. Deus viu o sofrimento, ouviu o clamor e desceu para
libertar o povo (Ex 3,7-10), chamando Moisés para conduzi-los à Terra
Prometida.
Após uma longa experiência no deserto, o povo começou a
viver uma vida bonita, em forma comunitária (tribalismo). Depois veio a
monarquia, acompanhada de profetas que falavam em nome de Deus. Contudo, a
infidelidade do povo e a má administração dos reis os afastaram do projeto
divino. O reino se dividiu: Israel, no norte, com Tersa e depois Samaria como
capital, e Judá, no sul. Israel foi conquistado pela Assíria em 721 a.C., e
Judá pela Babilônia em 586 a.C. No exílio babilônico, o povo experimentou o
sofrimento de viver longe de sua terra. Sofreu também o povo que ficou dominado
na terra. Contudo, a mão do Deus Redentor permitiu o retorno do povo à sua
terra. Novos profetas surgiram e alguns começaram a anunciar que Deus ainda
tinha um projeto para o seu povo: a vinda do Messias.
A Bíblia em hebraico
A história do Antigo Testamento se estendeu por
aproximadamente dois mil anos. Primeiro, o povo viveu essa história; depois,
contaram a história vivida, acrescentando novos fatos; em seguida, começaram a
escrever os primeiros textos; e, por fim, outros autores deram a redação final
a esses livros. Em todos esses momentos, consideramos que houve a inspiração de
Deus. Portanto, o texto bíblico é o resultado da ação conjunta de Deus e de seu
povo. Os livros foram inspirados por Deus e escritos por seres humanos. O povo
de Deus, que vivia em Israel, falava hebraico ou aramaico e, por isso, escreveu
a Bíblia em hebraico.
A Bíblia em grego (LXX ou Septuaginta)
Após o retorno do exílio, muitos hebreus viviam fora de
Israel, seja exilados, seja por emigração. Nessa época, a língua grega era
amplamente falada em quase todo o mundo. Os hebreus que estavam fora de Israel
enfrentavam dificuldades para acessar o texto bíblico escrito em hebraico,
especialmente seus descendentes, que estudavam e falavam o grego. Por esse
motivo, em Alexandria, no Egito, cerca de 300 anos antes de Cristo, alguns
escribas hebreus decidiram traduzir a Bíblia para o grego. Segundo a tradição,
72 escribas vindos de Israel (seis de cada tribo) se reuniram em celas
separadas e, em 72 dias, cada um produziu uma cópia da tradução. No final, os
textos eram idênticos. Absolutamente iguais. Assim, essa tradução ficou
conhecida como LXX (Setenta) ou Septuaginta. Entretanto, sabemos que a história
não foi exatamente assim. A tradução para o grego foi realizada por muitas
mãos. Alguns tradutores conheciam bem tanto o hebraico quanto o grego, mas
alguns livros receberam péssimas traduções para o grego. Muitas vezes, tiveram
que explicar alguns termos, interpretar expressões e adaptar o texto para
torná-lo compreensível ao público de língua grega.
Os hebreus que viviam em Israel não aprovaram a tradução
para o grego. Segundo eles, Deus “falava” apenas em hebraico. Por outro lado,
os hebreus que moravam fora de Israel gostaram da tradução, pois podiam ler,
estudar e viver a Palavra de Deus em sua nova língua e usá-la nas liturgias e
celebrações. Além disso, foram além e reconheceram que alguns livros escritos
fora de Israel também faziam parte da história do povo de Deus e, portanto,
eram inspirados por Ele. Foi assim que incluíram na Bíblia os livros de
Eclesiástico, Sabedoria, Tobias, Judite, Baruc, 1 e 2 Macabeus, além de alguns
trechos de Daniel, Ester e uma Carta de Jeremias.
Para os judeus em Israel, isso foi considerado um absurdo,
pois, segundo eles, Deus só se revelava em hebraico. Assim, mantiveram a sua
Bíblia “menor”, apenas em hebraico. Enquanto isso, os judeus que viviam fora de
Israel adotaram uma Bíblia “maior” (1), em grego. Após a destruição do Templo
de Jerusalém, em 70 d.C., o judaísmo que sobreviveu definiu que a Bíblia
hebraica, a “menor”, seria a única verdadeira para eles. O encontro no qual
ocorreram essas discussões e que deu início ao processo de definição do cânon
judaico, embora sem formalizar seu fechamento, ficou conhecido como “Sínodo de
Jamnia”, por volta de 90 d.C., sendo marcado por debates que ajudaram a
consolidar o judaísmo rabínico, mas sem uma decisão conciliar definitiva, já
que o processo foi gradual e se estendeu por séculos.
Jesus viveu em Israel, onde se falava hebraico e aramaico.
Ele estudou a Bíblia e, quando ia às sinagogas, lia os trechos bíblicos. Como
estava em Israel, sempre utilizava a Bíblia Hebraica “menor”.
Novo Testamento em grego
Jesus pregou e anunciou sua mensagem em aramaico e hebraico,
mas o Novo Testamento foi escrito em grego. Os Apóstolos começaram a anunciar a
Boa Nova de Jesus em Israel e, depois, espalharam-se por todo o mundo. Nessas
regiões, a língua falada e escrita era o grego, por isso utilizaram o Antigo
Testamento na versão grega, ou seja, a Bíblia “grande”. Isso demonstra que Deus
revelava sua mensagem em qualquer língua que desejasse. O Novo Testamento
cita o Antigo Testamento cerca de 350 vezes, sendo que pelo menos 300 dessas
citações são da versão grega (LXX).
A Vulgata (Bíblia em latim)
No século V, o grego deixou de ser a língua predominante e o
latim passou a ser a língua mais falada e escrita. A Igreja, que anunciava a
Boa Notícia do Antigo Testamento e de Jesus, precisou traduzir a Bíblia para o
latim, a língua da época. Algumas versões em latim surgiram. Em 382, o Papa
Dâmaso pediu a São Jerônimo que traduzisse os Evangelhos. São Jerônimo, então,
foi morar em Jerusalém e Belém, onde conheceu um famoso rabino que o ensinou
hebraico. Assim, ele começou a traduzir a Bíblia Hebraica (Antigo Testamento).
Tudo correu bem enquanto traduziu a Bíblia “pequena”. O rabino (que era de
Israel), no entanto, opinou que os livros do Antigo Testamento escritos em
grego não deveriam ser traduzidos. São Jerônimo ficou confuso, mas, consultando
a Igreja, decidiu incluir esses livros na tradução latina, conhecida como
Vulgata (do latim “vulgar”, sem conotação pejorativa, mas “vulgar” no sentido
de “popular”, “de uso comum” ou “fácil”). Assim, a Bíblia em latim também ficou
“grande”, como a versão grega. O tempo foi passando, e em toda a Igreja
usava-se a Bíblia “grande”.
A tradução de Lutero
No século XVI, Martinho Lutero deu início à Reforma
Protestante. Sendo alemão, Lutero acreditava que o povo deveria ler a Bíblia em
sua língua materna, por isso traduziu a Bíblia para o alemão, com muita
dedicação. No entanto, ele seguiu a versão hebraica “pequena” e ficou em dúvida
quanto aos livros do Antigo Testamento escritos em grego, decidindo traduzir
somente os livros da Bíblia “pequena” (2). O Novo Testamento não apresentou
problemas, pois sua tradução permaneceu idêntica ao texto utilizado pela Igreja
Católica. Dessa forma, a Bíblia traduzida por Lutero seguiu a versão “pequena” (no
que se refere ao Antigo Testamento), enquanto a Bíblia traduzida pela Igreja
Católica manteve a versão “grande”. Logo após, surgiram traduções da Bíblia
para diversas línguas. As traduções católicas eram “grandes”, enquanto as
traduções protestantes eram “pequenas”.
Conclusão
Portanto, é importante conhecer bem essa história. Dizer que
os Protestantes removeram sete livros da Bíblia é incorreto, assim como afirmar
que os Católicos acrescentaram sete livros. A diferença entre as Bíblias é
fruto de uma longa história e das opções feitas durante as traduções para as
línguas modernas. Hoje, Católicos e Protestantes colaboram de forma ecumênica
em muitos projetos relacionados à Bíblia.
* * *
As Bíblias traduzidas em português
a) Bíblia de Jerusalém
É o melhor e mais seguro texto bíblico para estudo. Trata-se
de uma tradução muito fiel, realizada a partir dos textos originais por
biblistas altamente qualificados. Embora não seja uma versão popular, por
priorizar a precisão dos textos originais, é muito utilizada em Seminários,
incluindo alguns protestantes. Possui boas notas de rodapé e informações sobre
os textos paralelos, além de uma boa linha do tempo e da história ao final dos
volumes, e boas introduções a cada livro da Bíblia. Em 2002, passou por uma
revisão geral que aprimorou ainda mais o texto.
b) Bíblia Sagrada – Edição Pastoral
Essa é uma boa tradução, também realizada por biblistas
sérios e competentes. Sua linguagem é bem popular, tornando-se um texto fácil e
agradável de ler. Traduzida recentemente, é recomendada para o povo. As
introduções a cada livro são boas, mas as notas de rodapé, embora presentes,
nem sempre são boas.
c) Bíblia da CNBB
É uma tradução recém-editada, com um texto de boa qualidade
e linguagem acessível. Seu foco é litúrgico, sendo destinada ao uso nas
celebrações litúrgicas em toda a Igreja do Brasil. Um exemplo de tradução em
2Tm 3,17: “...a fim de que toda pessoa seja útil para a boa obra”. No
original grego, o termo é “anthropos”, que significa “homem”. Contudo,
como a maioria dos participantes das celebrações são mulheres, a Bíblia
litúrgica opta por traduzir “pessoa”, visando uma melhor adaptação ao contexto.
Em contrapartida, uma Bíblia de estudo deve manter a tradução literal como “homem”.
d) TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia)
Essa tradução foi realizada por um grupo composto por
católicos, protestantes e hebreus, buscando um equilíbrio entre as tradições. Por
isso, o texto procura ser conciliatório, às vezes difícil. Além disso, a ordem
dos livros da Bíblia pode não ser a mesma com a qual estamos acostumados. No
entanto, a TEB traz boas introduções e notas de rodapé de qualidade.
e) Bíblia Ave-Maria
Uma das traduções populares mais antigas. No entanto, a
versão em português não foi traduzida diretamente dos textos originais, mas
teve um papel importante, pois foi uma tradução popular, fácil e que foi a mais
usada pelo povo durante muito tempo. Dada a sua idade e os avanços nos estudos
bíblicos, esta versão merecia uma atualização, corrigindo algumas palavras e
expressões. Existe também uma versão para estudo, que contém boas notas de
rodapé.
f) Bíblia Mensagem de Deus (edições Loyola)
Essa tradução apresenta um bom texto e é fiel ao original,
embora não seja muito conhecida.
g) Bíblia “O Pão Nosso” (Vozes)
Também oferece um bom texto, mas possui poucas notas de
rodapé e é pouco conhecida.
h) Bíblia do Peregrino
Tradução feita pelo renomado biblista L. Alonso-Schökel e
sua equipe. O texto é de boa qualidade, embora, em alguns momentos, possa ser
um pouco confuso. Possui muitas notas de rodapé e, geralmente, custa mais caro.
i) Bíblias Protestantes
A maioria das Bíblias protestantes segue a tradução feita
por João Ferreira de Almeida, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Essas
versões foram traduzidas diretamente dos textos originais e são reconhecidas
por sua fidelidade. No entanto, geralmente possuem poucas notas de rodapé e não
trazem introduções aos livros. Para nós católicos, falta nelas os sete livros
da Bíblia “grande” do Antigo Testamento, que também consideramos inspirados. A
versão mais recomendada é a Almeida Revista e Atualizada (ARA).
j) A Bíblia das Testemunhas de Jeová
Essa versão é conhecida por manipular e traduzir
incorretamente diversos textos, especialmente aqueles que se referem à
divindade de Jesus.
l) Outras Bíblias
Recomenda-se não comprar Bíblias de vendedores porta a
porta, mesmo aquelas que possuam ilustrações bonitas. Geralmente, essas versões
são mais caras, possuem textos de péssima qualidade, que normalmente não são
traduzidas dos originais e nem por especialistas. Muitas vezes, são edições que
encalham em livrarias.
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(1) Os livros que estão a mais na
Bíblia “grande” são chamados de Deuterocanônicos (para os Protestantes, são
considerados Apócrifos). O uso dos termos “pequena” e “grande” não implica que
uma Bíblia seja melhor ou superior à outra, mas apenas que uma contém mais ou
menos livros, resultando em uma versão mais “grossa” ou “fina”.
__________
Imagem: foto de Ítalo de Oliveira.
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