O Senhor vem: é tempo de oração e expectativa vigilante (Mt 24,37-44)

Por: - 22 de novembro de 2022

Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)

O último dia, até que o Senhor se manifeste, será um dia como qualquer outro, em que estaremos em nossas ocupações ordinárias. Jesus explica que será semelhante às circunstâncias do tempo do dilúvio, em que as pessoas “comiam, bebiam e casavam-se”... Por isso, devemos santificar nossas atividades, sempre atentos aos sinais divinos. 
Na liturgia, encontramos este evangelho no 1º Domingo do Advento - Ano A.

Contexto

Para a maioria dos intérpretes, o evangelho segundo Mateus foi escrito entre as décadas de 80 e 90 d.C., depois da destruição de Jerusalém e do Templo, ocorridos no ano 70 d.C., quando os cristãos já haviam sido expulsos das sinagogas e sofriam com a perseguição do império romano.

Em Mateus, Jesus faz cinco grandes discursos sobre o Reino de Deus e sua prática. Assim, Mateus faz um paralelo entre as pessoas de Jesus e Moisés. Uma vez que os livros do Pentateuco, a Torá (a Lei), são atribuídos a Moisés, Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés e, com isso, diz que os cinco discursos de Jesus remetem ao Pentateuco. Jesus nos trouxe a nova lei. Moisés desceu do Monte Sinai com as tábuas da Lei, os Dez Mandamentos. Jesus desceu de junto do Pai para nos revelar o Reino de Deus e a forma como devemos viver para participar dele.

Nos capítulos 24-25 de Mateus, nós encontramos o quinto e último discurso de Jesus, chamado Escatológico. A escatologia é um discurso teológico sobre os últimos acontecimentos da História. Neotti (2019, p. 18) observa que, do ponto de vista da nossa história, serão as últimas coisas, mas, olhando do “lado de lá”, serão as primeiras coisas. Por isso, o Catecismo também chama essas mesmas “coisas” de Novíssimos.

No início do capítulo 24, Jesus anuncia a destruição do Templo (v. 2), ao que os discípulos perguntam quando tal coisa aconteceria e que sinais indicariam a volta de Jesus e, consequentemente, viria o fim do mundo (v. 3). A partir daí Jesus revela quais serão os sinais de que o tempo se completou (vv. 4-33). Jesus, portanto, faz dois anúncios. Sobre a destruição do Templo, Jesus afirma que aconteceria ainda durante a geração dos discípulos (v. 34) e, de fato, no ano 70 d.C., Jerusalém e o Templo serão devastados pelas tropas do general romano Tito. Sobre “aquele dia” (v. 36), porém, Jesus não revela uma data precisa. Na Bíblia, a expressão “aquele dia” é muito usada para se referir ao dia do Juízo Final. Há uma relação entre os dois acontecimentos, pois a destruição de Jerusalém e do Templo prefiguram o último dia e a consumação da história. A própria devastação de Jerusalém é o fim de um mundo, o judaico. Jerusalém era o centro da fé judaica e o Templo, o seu maior símbolo, fora projetado como uma espécie de maquete do universo. Ao sair do Templo (24,1), Jesus rompe com o sistema corrupto estabelecido, para lançar os alicerces de um mundo novo a partir do evangelho. Jesus não revela a data do Juízo, mas indica a postura que deve ter aquele que o espera. Não se deve calcular a data, a curiosidade deve dar lugar à vigilância pois, como diz Shockel (2000, p. 75), a “incerteza é a única certeza”.

O caminho do discurso de Jesus passa pelas respostas a estas três perguntas, que formam a estrutura do bloco 24-25 de Mateus, na sequência: O que acontecerá? Quando acontecerá? O que fazer enquanto não acontece?

 

Comentário

“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé. Pois nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos. Assim acontecerá também na vinda do Filho do Homem.” (vv. 37-39)

Jesus faz uma menção à profecia de Daniel e, em seguida, utiliza um exemplo que era do conhecimento de todos os seus ouvintes: o dilúvio. A profecia que fala do Filho Homem está em Daniel 7. Jesus não só se refere ao texto profético, mas, no seu discurso, usará a linguagem típica dos textos apocalípticos, que é o caso da profecia em questão. Deus, sentado em seu trono, entrega um reino jamais visto a uma figura que é como um Filho do Homem. A profecia terá sua conclusão com a vitória e entronização do Filho do Homem. Além de citar a profecia, Jesus faz uma releitura do texto e o aplica a si mesmo. No exemplo do dilúvio, temos como ensinamento principal a imprevisibilidade do fato. O dilúvio veio de repente, assim como a morte também não avisa. Noé, que se preparou, foi salvo. O resto de sua geração pereceu.

O último dia, até que Jesus se manifeste, será um dia como qualquer outro, em que as pessoas estarão em suas vidas ordinárias. Comiam, bebiam, casavam-se e, sem que percebessem, foram surpreendidas pelo dilúvio. Não que seja errado fazer o que essas pessoas estavam fazendo, o problema reside no fato delas estarem fechadas em suas vidas, sem abertura aos sinais divinos. Por outro lado, não devemos ficar esperando grandes sinais. A manifestação de Deus acontece no nosso cotidiano, nas atividades próprias de nossas vidas. As pessoas do tempo do dilúvio poderiam ter percebido os sinais de Deus no beber, no comer e no casar, que aqui são exemplos de situações normais do dia a dia, mas não perceberam, porque estavam presas à materialidade da vida. Conta-se que Teresa de Jesus, após um arrebatamento místico enquanto trabalhava na cozinha, disse às monjas: “em meio às panelas, também anda o Senhor”, ou seja, nas obrigações diárias temos um encontro marcado com Deus. Por isso, em tudo o que vamos fazer, devemos dar o melhor para que seja bem feito, para realizar com dedicação o pouco que nos cabe no mundo. Devemos vigiar nossa vida de hoje, que está acontecendo diante de nossos olhos. Precisamos saber o que ainda devemos melhorar, quais virtudes ainda nos faltam, que vícios temos que combater, o perdão que ainda não concedemos ou pedimos… Paulo exortava os coríntios: “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.” (1Cor 10, 31)

O homem e a mulher de Deus devem sempre deixar suas vidas abertas à transcendência. Há sempre mais no que fazemos. Mais do que as próprias vidas, devemos deixar sempre o mundo aberto à grande notícia da salvação e à esperança do encontro definitivo com Deus. O tempo do Advento nos convida à pedagogia da esperança. Jesus dá o exemplo do dilúvio por causa da não aceitação dos seus sinais por parte das autoridades judaicas, que estavam presas ao legalismo, ritualismo e aos privilégios humanos que queriam manter.

Podemos ainda aprender do exemplo dado por Jesus: ele nos ensina a ler e aprender com a história. Os erros passados podem ser evitados pelas gerações seguintes. Os acertos podem ser repetidos e até melhorados. Mas é preciso conhecer e discernir: não só a história de forma geral, mas a própria história pessoal. A sociedade do tempo do dilúvio crescia em maldade e violência (Gn 6,5.11), a sociedade do tempo de Jesus precisava mudar sua atitude frente ao anúncio do Juízo. Podemos, então, nos perguntar: como está a nossa sociedade? Como você está frente ao anúncio de Jesus? O juízo particular está sempre à nossa porta, na morte. Ela vem como o dilúvio... Quem está preparado para morrer? Que tipo de pessoa você é: Noé ou como o restante da geração dele? Ratzinger (2017, p. 67) ensina: “Trabalhamos nas realidades terrenas e, através delas, podemos sentir a presença de Deus e tender para Ele. Tudo o que podemos fazer nesta vida é saborear fragmentos de vida e de felicidade, enquanto aspiramos à plenitude.” 

 

“Dois homens estarão trabalhando no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo no moinho: uma será levada e a outra será deixada.” (vv. 40-41)

 Pelo contexto do discurso, podemos aferir que ser “levado” ou “deixado” tem como critério o “como” as coisas serão feitas, e não “o que” as pessoas farão. Lemos que dois homens que realizam a mesma atividade (trabalhar no campo) serão separados, um será “levado” (salvo, como Noé) e o outro será “deixado”, ou seja, como a geração de Noé foi deixada a mercê do dilúvio, assim ficarão aqueles que não aceitarem as palavras de Jesus, tanto na destruição de Jerusalém quanto no dia do Juízo. O exemplo das duas mulheres é um reforço do que já foi dito. Em sentido amplo, se trata de como a pessoa levou sua vida até aquele momento. 

 

“Portanto, ficai atentos! Porque não sabeis em que dia virá o Senhor.” (v. 42)

 Bortilini (2006, p. 13) sugere que o termo vigiar utilizado em Mateus 26,38.40-41, quando Jesus está no Getsêmani e pede aos discípulos que vigiem com ele, pode nos ajudar a compreender o mesmo verbo na perícope que estudamos hoje. No caso de Mateus 26, a vigilância significa solidarizar-se com Jesus, com sua dor, com a sua preparação para a Cruz. Em outras palavras, significa solidarizar-se com o sofrimento de Jesus. Na nossa perícope, portanto, somos convidados a vigiar, ou seja, a sermos solidários com Jesus e comprometidos com o seu projeto de um mundo novo. O mundo não será transformado em um passe de mágica, mas em um processo artesanal, que demanda esforço e dedicação pessoal, mas sobretudo fidelidade ao Evangelho. Devemos transformar o nosso tempo presente (Chronos) em um Kairós, ou seja, um tempo de graça (Idem, p. 15).

Vigiar também é ser inteiro no que se faz, ou seja, é estar sempre presente, desperto, comprometido com a realidade e com a própria conversão pessoal, promovendo o bem e combatendo profeticamente o mal. Um dos grandes perigos das seguranças humanas é nos fazer entrar no comodismo, na indiferença às realidades transcendentes. Devemos sempre garimpar a presença de Deus em cada atividade que realizamos e, assim, edificar nossas experiências humanas na esperança. A espera pela vinda de Jesus nos interpela a viver o tempo presente de forma comprometida, com discernimento e coragem para enfrentar e realizar o que nos é possível hoje. O capítulo 25 aprofundará o tema da vigilância com três parábolas: o servo fiel, as dez virgens e os três administradores. A oração final da liturgia do I Domingo do Advento pede a Deus a graça de que possamos “caminhar entre as coisas que passam, abraçando as que não passam.” 

 

“Compreendei bem isso: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, certamente vigiaria e não deixaria que sua casa fosse arrombada.” (v. 43)

Jesus dá um segundo exemplo para enfatizar a ideia de imprevisibilidade do Juízo: o ladrão que se utiliza do fator surpresa para fazer suas vítimas. Além disso, também quer dizer que, se os discípulos não estiverem alertas ou preparados com uma vida fiel e ativa, a vinda inesperada de Jesus “roubará” a alegria de sua participação escatológica nos propósitos de Deus.

São Gregório Magno ensina que “vigia aquele que observa em suas obras aquilo em que crê; vigia aquele que afugenta de si as trevas da indolência e da negligência”. Orígenes, numa leitura espiritual do texto, sugere que o “pai de família” é o entendimento do homem, a alma é sua casa e o ladrão é o demônio. Em seu método, o ladrão principia por destruir o intelecto natural da alma e, por essa brecha, a saqueia. Ele vem à noite, que é o tempo da malícia e das tentações, mas foge quando é dia, ou seja, quando a alma está iluminada pela Palavra de Deus, que é lâmpada e luz para o caminho do homem (cf. Sl 118 (119), 105).

 

“Por isso, também vós ficai preparados! Porque na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá.” (v. 44)

Nós vivemos uma contínua experiência da efemeridade de nossa existência. A matéria sempre perece. Sentimos quão evanescente é o que possuímos, cada vez que o perdemos. Um exemplo são os dispositivos eletrônicos, que tão logo deixam o topo de linha para se tornarem obsoletos. Isso vale para os carros e tantos outros itens de consumo. A pandemia (COVID-19) abriu nossos olhos para reconhecermos a fragilidade de nossas próprias vidas. Teresa de Jesus já nos alertava sobre isso, quando dizia: “tudo passa, só Deus não muda.”

A vigilância deve nos dar um olhar por cima dos nossos pequenos interesses e preocupações. É certo que, diante da eternidade, tudo nesta vida é pequeno. Mas não é porque é pequeno que devemos desprezar. A nossa fé na eternidade passa por essas coisas, passa por tudo o que fazemos, se o fazemos dando um sentido. Não devemos só olhar para dentro, para o nosso interior. Isso é importante, mas só terá valor salvífico se iluminar as nossas relações, a forma como atuamos no mundo. Jesus ensina a aprender com os exemplos da história, a ler a realidade da vida que acontece diante de nós.

Por fim, podemos resumir a mensagem da perícope de hoje em dois temas: vinda do Senhor e vigilância na espera pelo Seu retorno. Para Cantalamessa (2012, p. 17), mais do que dois temas, temos dois movimentos: o Senhor vem e nós vamos ao Seu encontro; Deus vem ao encontro do homem, mas só O encontra aquele que se coloca ao encontro Dele, ou seja, quem está pronto, vigilante. Que o Senhor nos conceda que, “com as nossas boas obras, possamos correr ao encontro do Cristo que vem.” (Oração da coleta do I Domingo do Advento - Ano A)

 

Reflexão

1) Atualmente vemos crescer cada vez mais pessoas com corações fechados pelo egoísmo, ciúmes, desprezo pelas coisas de Deus... Talvez você seja essa pessoa. Você aceita que Jesus venha à sua vida hoje?

2) Jesus vem em uma boa palavra, em um gesto de amor, nos atos de caridade. Você tem trazido Jesus às suas relações?

3) São insensatos os que trabalham apenas para as coisas que passam e a elas prendem o coração. O seu corpo e os bens que você possui lhe ajudam a melhor servir a Deus ou são apenas cúmplices de seus crimes?

4) O bom cristão sabe da necessidade diária da vinda de Jesus à sua vida, para que sua peregrinação nesta vida seja mais feliz e tenha sentido pleno. Como está sua vida de oração e intimidade com Deus e Sua Palavra?

 

Referências

AQUINO, Santo Tomás de. Catena Aurea: exposição contínua sobre os evangelhos; [tradução de Fábio Florence, Felipe Denardi, Leonardo Serafini Penitente, Ricardo Harada, Roberto Mallet e Ronald Robson - Campinas, SP: Ecclesiae, 2018.

ARMELINI, Fernando. Celebrando a Palavra: Ano A; [tradução de Comercindo B. Dalla Costa]. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2011.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

Bíblia do Peregrino. Com anotações de Luís Alonso Schokel. São Paulo: Paulus, 2000.

Boletim da Diocese de Coimbra. Homilias para todos os domingos e festas principais do ano litúrgico. Coimbra, PT: Gráfica de Coimbra, 1942.

BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos: Anos A, B, C, Festas e Solenidades. São Paulo: Paulus, 2006.

CANTALAMESSA, Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall'Alba]. - São Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.

CASAROTTI, Ana Maria. O Senhor Vem! Disponível em: <https://cebi.org.br/noticias/o-senhor-vemmateus-2437-44-ana-maria-casarotti/> Acesso em: 20.04.2022.

HAHN, Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Denis. O evangelho de São Mateus - Cadernos de estudo bíblico; [tradução de Thomaz Perroni - Campinas, SP: Ecclesiae, 2014.

NEOTTI, Clarêncio. Ministério da Palavra: comentário aos evangelhos dominicais e festivos. - Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.

PAPA BENTO XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo/Bento XVI: o ano litúrgico pregado por Bento XVI, tomo I: Ano A. 1a edição; tradução oficial da Santa Sé revisada. São Paulo: Molokai, 2017.

STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo: Paulus, 1991.

TABORDA, Francisco; KONINGS, Johan. Celebrar o dia do Senhor: subsídios litúrgicos: anos A, B, C. São Paulo: Paulus, 2020.

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