O sorriso de Deus
1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é
refletir sobre um tema muito presente na Bíblia, bem como na caminhada da
Igreja: o humor e a alegria. Nós somos imagem e semelhança de Deus, por isso,
se transmitimos a imagem de um Deus carrancudo, triste e sempre pronto a
proferir julgamentos, não é de estranhar que a prática religiosa não seja
diferente disso. Por isso, a pretensão é mostrar que o Deus da Bíblia não é tão brabo
assim e que transmitir imagem de um Deus sorridente não somente é possível, mas
torna-se necessária para uma Igreja que caminha pelas estradas do mundo em
tempos difíceis como os que estamos vivendo hoje.
2. UM DEUS QUE SABE SORRIR
A Bíblia nos informa que
Deus gosta de sorrir. Ainda que seja das maldades praticadas pelos opressores:
“Aquele que habita nos céus ri, o Senhor se diverte à custa deles” (Sl
2,4). Deus ri também do ímpio que persegue o justo: “O ímpio faz intrigas
contra o justo e contra ele range os dentes; mas o Senhor ri às custas dele,
pois vê que seu dia vem chegando” (Sl 37,13). Em outros textos da Bíblia se
diz que Deus ri dos inimigos e das nações adversárias (Sb 4,18; Sl 59,9). Não
deixa de ser uma bela expressão do rosto do nosso Deus que se diverte diante do
orgulho dos prepotentes. O sorriso de Deus é a resposta irônica ridicularizando
os que agem como se fossem deuses.
A expressão de um Deus feliz
e sorridente passou despercebida por alguns dos autores bíblicos. Devido às
inúmeras situações vividas pelo povo de Deus, tantas vezes desagradando ao
Criador e Senhor que os conduzia, o Antigo Testamento seguidamente teve que
revelar a imagem de um Deus que castiga e que anda mal-humorado com o ser
humano. Sim, Ele chegou a se arrepender de ter criado o ser humano (Gn 6,6).
Mas nem por isso desistiu de caminhar com seu povo.
Nossa imagem do divino
frequentemente foi marcada por uma visão de Deus sempre pronto ao julgamento,
um juízo severo e que nos causava medo. Porém, a própria Bíblia insiste tantas
vezes que não devemos ter medo diante da realidade em que vivemos. Muito menos
devemos ter medo de Deus. A expressão “não tenha medo” aparece mais de cento e
quarenta vezes na Bíblia e quase sempre é pronunciada por Deus, pelos Anjos,
pelos Profetas ou por Jesus.
Em Nm 6,22-27 temos um dos
textos mais belos de toda a Bíblia, onde o próprio Deus orienta Moisés e Aarão
sobre como Ele quer abençoar o seu povo. Nessa bênção, por duas vezes, pede-se
ao Senhor para que ilumine e mostre o seu rosto concedendo bondade e paz.
Segundo a TEB, em hebraico, equivale a dizer que o Senhor “te mostre um rosto
sorridente” (1). De fato, Deus promete e concede a bênção e a paz ao seu povo.
A bênção é o maior bem possível que podemos esperar de Deus.
Conta uma historinha antiga
que alguém chegando no céu viu a figura daquele “paizão” lá sentado e sempre
balançando a cabeça em forma positiva. Não entendendo o que estava acontecendo,
ele foi perguntar a São Pedro o que estava fazendo aquele senhor:
— Não ligue... É o Pai
Eterno. Não sabe fazer outra coisa... Vive perdoando!
Na Bíblia temos também uma
passagem famosa sobre a paciência de Deus. Em Gn 18,17-33, Deus está para
destruir Sodoma, a cidade pecadora. Abraão intercede e começa a negociar: “E
se nela eu encontrar cinquenta justos?” Neste caso Deus promete que terá
misericórdia. Abraão vai baixando. “Mas se eu encontrar só quarenta e cinco?”.
Deus vai negociando. E Abraão vai diminuindo a quota até chegar a dez justos. E
cada vez que faz uma nova proposta a Deus, Abraão pede que não se irrite com
ele. Deus de fato não se irritou. Irritar-se é o contrário de alegrar-se,
sorrir, sentir-se bem.
É bom descobrir que o nosso
Deus sabe sorrir! Encontramos em outro lugar na Bíblia que Ele também gosta de
brincar. Deus criou o mar e nele “formou o Leviatã para brincar com ele”
(Sl 104,26). Nosso Deus brinca e se diverte. Brincar é uma das coisas belas que
podemos fazer, sobretudo quando ficamos adultos; nada melhor que voltar a ser
crianças e brincar um pouco. E Deus gosta de brincar. Tanto isso é verdade que
toda a Criação é boa e bela! Quando olhamos as florestas e comparamos com as
plantações de árvores modernas, é possível ver como Deus não usava a
milimetragem. Plantava a seu modo; a diversidade faz parte do jeito de Deus
brincar. Outras vezes prevalece a harmonia e a perfeição. Basta ver um jardim
de flores. E toda a criação parece ser uma brincadeira nas mãos do hábil
escultor que é Deus. E depois de cada obra criada Ele contempla e vê que tudo é
muito bonito e bom! (Gn 1,4.10.12.18.21.25.31).
A Criação, conta-nos a
Bíblia, surgiu da Sabedoria de Deus. Quando Deus criava o mundo, lá estava a
Sabedoria dizendo:
todo o tempo brincava em sua presença:
brincava na superfície da terra,
encontrava minhas delícias entre os homens”.
Portanto, rir e brincar com
o agir de Deus, não pode em hipótese alguma ofender o Criador. “Toda vez que
eu me olho no espelho, convenço-me sempre mais que Deus tem um grande senso de
humor” – disse certa vez Matteo Molinari, um escritor italiano.
No livro do Gênesis
encontramos Abraão e Sara já em idade avançada e sem filhos, apesar de
continuarem acreditando na Promessa de Deus que lhe daria descendência. Então
Deus visita os dois velhinhos e renova a promessa que nascerá para eles um
menino. Isso é motivo de riso. Abraão cai com o rosto por terra e começa a rir
(Gn 17,17). Sara também riu, pois “deixara de ter o que têm as mulheres”.
Riu-se, pois, no seu íntimo, dizendo: “Agora que estou velha e velho também
está o meu senhor, terei ainda prazer?” (Gn 18,11-12). O Senhor, porém,
questiona Abraão não por causa do riso, mas por causa da dúvida na palavra
divina. O menino será chamado Isaac (Yçhq-El), em sua forma abreviada,
que significa: “Que Deus sorria, seja favorável” ou “sorriu, mostrou-se
favorável” (2). No seu nascimento a mãe exclama: “Deus me deu motivo de
riso, todos os que o souberem rirão comigo” (Gn 21,6). E para uma mulher
hebreia não poderia haver algo mais triste do que morrer sem deixar
descendência. Ou seja, a intervenção de Deus é motivo de alegria e de
felicidade! É belo rir quando nascem crianças que vêm trazer esperança. É isso
que faz o povo simples toda vez que nasce uma criança.
3. DEUS NÃO É TÃO BRABO ASSIM
Se algumas vezes vamos
encontrar textos que mostram a face de Deus como violenta e irada, é certo que
não é este o traço principal que a Bíblia nos quer transmitir. “Sua ira dura
um momento, mas o seu favor dura a vida inteira” (Sl 30,6). Nosso Deus é o
Deus da Justiça, é também o Deus do Perdão, da Bondade, da Consolação, presente
em todos os momentos da história, Deus Santo, Deus Amor, Deus que é Pai e Mãe,
Deus Trindade (a melhor comunidade), Deus Criador e que ama a Vida (Sb 11,26) e
que enviou seu Filho ao mundo para que “todos tenham vida e vida em
abundância” (Jo 10,10).
Quando os judeus celebram a
Páscoa, são servidos quatro copos de vinho em sinal da alegria pela libertação
e passagem da escravidão à libertação; do Egito à Terra Prometida. No entanto,
quando é servido o segundo cálice, antes de ser tomado, são recordadas as dez
pragas do Egito e a cada praga mencionada, é retirada uma gota de vinho do
copo. “Por que derramar uma gota de vinho quando se mencionam as pragas com as
quais Deus castigou os egípcios?” — pergunta o menino ao pai. “O costume de
derramar-se vinho do copo ao mencionar as pragas com as quais Deus castigou os
egípcios tem origem no Midrash: ele nos conta que quando Deus abriu o
Mar Vermelho para salvar os israelitas e fechou-o em seguida afogando os
egípcios, os anjos do céu queriam cantar um hino de louvor, mas Deus os
repreendeu, dizendo: ‘Minhas criaturas estão se afogando no mar e vocês querem
cantar?’. Portanto, não devemos nunca nos alegrar na hora da dor das outras
pessoas, mesmo na dor dos nossos inimigos. Por isso derramamos uma gota de
vinho do nosso copo. Ele não pode estar cheio ao comentarmos a tristeza alheia”
(cf. Hagadá de Pêssach, p. 21).
O Frei Carlos Mesters conta
uma historinha mais ou menos assim. Certo dia numa sala de aula um professor
mostrou a fotografia de um homem e perguntou aos estudantes o que achavam
daquela foto.
“— Que homem brabo!
— Pobre da mulher dele!
— Sujeito difícil de
conviver, esse aí!
— Vai ser feio assim lá no
inferno!
— Não queria ser filho dele!
E assim por diante
continuaram as opiniões dos estudantes. Então entrou na sala um rapaz, olhou
para a fotografia e disse:
— É meu pai! Tenho orgulho
dele!
Mas aí alguém perguntou:
— Com essa cara?
E o rapaz respondeu:
— Vocês não sabem, mas meu
pai é advogado e nesse dia ele estava no Tribunal defendendo uma família pobre
que estava sendo injustiçada. Por isso, ele está indignado na foto. Em casa é
gente boa, e o povo da comunidade gosta muito dele. Ele tem um coração que vale
ouro! Vocês nem imaginam quantas pessoas pobres ele já defendeu e ajudou sem
cobrar um centavo!”
E a turma toda mudou de
opinião depois de ouvir o relato do rapaz. O mesmo parece que aconteceu com a Bíblia.
Muitas vezes nosso Deus se mostra duro e indignado, mas é por causa das
injustiças cometidas contra os pequenos e pobres.
4. RIR OU NÃO RIR?
É certo que o riso aparece
na Bíblia também de forma negativa, como o autor de Eclesiastes, que afirma: “Do
riso eu disse: tolice”, e da alegria: “para que serve?” (Ecl 2,2).
Porém, estes textos devem ser lidos dentro de todo o contexto do livro. O autor
é crítico de uma felicidade que beneficia somente uns poucos como era a
sociedade do seu tempo (3). O Eclesiastes não é, portanto, um livro contra a
felicidade. Antes, esta é a sua busca. Mas a alegria e a felicidade devem ser
para todos e, sobretudo, para os que vivem mais tristes e oprimidos. Como “há
um tempo para tudo debaixo do céu”, haverá também o “tempo para sorrir e
para bailar” (Ecl 3,4a). Por isso, muitos estudiosos viram em Coélet o
“pregador da alegria e da felicidade”. Parece que assim foi entendido pela
tradição judaica, que lê este livro durante a Festa das Tendas, justamente uma
festa de outono muito animada e cheia de alegria (Dt 16,14-15).
Riso terrível é, no entanto,
o dos opressores que riram ao ver a ruína de Jerusalém (cf. Lm 1,7).
Pessimista, neste sentido, é também o autor da Carta de Tiago quando diz: “Entristecei-vos,
cobri-vos de luto e chorai. Transforme-se o vosso riso em luto e vossa alegria
em desalento” (Tg 4,9). Mas também este texto deve ser lido dentro do
contexto. A alegria e o riso nestes textos são daqueles que oprimem, matam,
vivem do prazer do mal. O sorriso dos opressores é sempre um riso malvado, sem
graça, sem motivo, condenado por Deus.
Portanto, Deus e a Bíblia
são contrários a um sorriso falso. Contrários à alegria daqueles que vivem
rindo e felizes da vida à custa do sofrimento dos fracos e dos pobres. A
felicidade de quem tem mais riquezas não pode ser conseguida explorando e
roubando os mais pequenos. A alegria injusta será punida. E dos estultos e
opressores, Deus ri, caçoa deles... A Bíblia nos ensina que Deus punirá esta
alegria que não é verdadeira. Antes é um escárnio contra Deus, contra os
pobres.
Porém, na mesma Carta, Tiago
não condena a alegria do povo: “Alguém está alegre? Que cante!” (Tg
5,13b). A alegria deve ser expressa em gestos e assim contagia os demais irmãos
da comunidade.
Riso belo e cheio de alegria
é aquele do povo que volta do exílio, cantando feliz. “Nossa boca se encheu
de sorrisos e nossa língua de canções!” (Sl 126,2), porque “aqueles que
semeiam com lágrimas, ceifam em meio a canções” (Sl 126,5). O Profeta
Zacarias, por sua vez, revela que o sonho messiânico de Deus é uma cidade
feliz: “Velhos e velhas ainda se sentarão nas praças de Jerusalém... e as
praças da cidade encher-se-ão de meninos e meninas que brincarão em suas praças”
(Zc 8,4-5).
No Livro dos Provérbios
temos um dos mais belos elogios à mulher (Pr 31,10-31). E encontramos também
uma expressão de riso. É o sorriso ligado à esperança, afirmando que a mulher “está
vestida de força e dignidade, e sorri diante do futuro” (Pr 31,25).
É também a Bíblia que nos
diz que “fomos criados à imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,27). Nós
temos dentro de nós também o dom de sorrir e brincar. Aliás, bem lembrou
Aristóteles que dentre os seres criados, nós humanos somos os únicos que
recebemos este dom de poder sorrir! Isso nos diferencia das demais criaturas.
Nós humanos, em geral, nascemos chorando, mas aprendemos a sorrir antes mesmo
de falar.
O povo de Deus soube
conservar a Sabedoria, os provérbios e até um livrinho sobre a beleza do amor
humano (o Cântico dos Cânticos). Não temos, no entanto, um livro exclusivo
sobre o riso e as histórias engraçadas. Mas em muitas passagens encontramos
histórias que falam da alegria do povo. Em outros lugares, a Bíblia nos contou
fatos de modo que se pode rir dos opressores. E devemos reconhecer que o povo
judeu teve o dom de poder sorrir nos momentos mais difíceis da vida, em meio às
dores e catástrofes. O sorriso é, portanto, também uma forma de resistência dos
fracos.
Existem duas formas de
contar piadas de alguém. O sarcasmo e a ironia contra os opressores. Basta um
prepotente aparecer e surgem logo piadas maliciosas contra ele para
ridicularizá-lo. É uma forma de luta dos pobres. Na Bíblia também os justos
riem às custas do forte (Sl 52,8); Daniel sorri de Bel, um opressor que se
julgava estar acima de Deus (Dn 14,9).
Em sentido contrário, temos
o riso bondoso e brincalhão no bom sentido. As anedotas sobre o agir de Deus,
sua obra e os personagens bíblicos vão nesta linha. São piadas engraçadas,
brincando com Deus, vendo a vida e as coisas pelo avesso.
5. NO NOVO TESTAMENTO
Os Evangelhos nos contam que
em uma situação da vida Jesus chorou (Jo 11,35). Lucas relata também que no
momento crucial da sua vida, Jesus chegou a suar gotas de sangue, tal era a sua
angústia (Lc 22,44). A Carta aos Hebreus diz que Jesus “apresentou pedidos e
súplicas, com veemente clamor e lágrimas” (Hb 5,7). Encontramos várias
vezes Jesus emocionado ou que Ele exultou de alegria (Lc 10,21; Mt 11,25). Só
não temos passagens que digam explicitamente que Jesus sorriu. Mas não é porque
os Evangelhos não relatam que podemos afirmar que Jesus nunca sorriu. É difícil
imaginar um Jesus que não soubesse sorrir. Jesus era um verdadeiro hebreu, que
viveu e se alimentou da mística dos anawim e dos hassidim (os
pobres e piedosos do Senhor) e que foi autor de tantas parábolas bonitas. Ele
que andava por todas as regiões da Galileia e Judeia e que circulava com um
grupo de discípulos. Jesus que sabia contar histórias bonitas e deve ter dado
boas gargalhadas! Jesus deve ter sorrido tantas vezes!
É importante que façamos da
nossa religião uma religião alegre e cheia de vida e de esperança. O Apóstolo
Paulo é um exemplo disso. Ele rejeitava qualquer outro Evangelho que não fosse
o anúncio do Jesus, e Jesus crucificado (1Cor 1-4). Sabemos que este Apóstolo
passou por tantos perigos, tribulações, perseguições, prisões e, por fim, a
morte por causa da sua fé (vejam 2Cor 11,23-29!) Nem por isso, deixou de
recordar-nos que a fé deve ser alegre e cheia de esperança (Fl 4,1ss).
Interessante ler a carta aos Filipenses. Paulo está na prisão e a comunidade
sofre perseguições. Pois é justamente nesta pequena Carta, de apenas quatro
capítulos, que o Apóstolo fala pelo menos 17 vezes da alegria e do regozijo!
O único problema que temos
com este Apóstolo é a dificuldade de contarmos piadas a seu respeito. Ainda que
tenha sido um baixinho e careca. Bem mais fácil é contar piadas sobre Deus e
sua criação. Adão e Eva são os campeões. Deles são tantas as piadas. De Jesus
Cristo também temos uma abundância de pequenas anedotas que nos fazem rir, sem
desmerecer todo o seu ensinamento. Contam-se historinhas da Mãe de Jesus e dos
Apóstolos. Pedro também é muito citado.
Quem foram os autores delas?
Nunca saberemos. Assim como os provérbios e salmos na Bíblia que são atribuídos
a Salomão, Davi ou outras pessoas famosas, sabemos que na realidade tiveram a
autoria popular. As anedotas bíblicas foram contadas pela primeira vez,
recontadas, melhoradas, aumentadas, adaptadas às novas situações e nunca saberemos
quem de fato foram os verdadeiros autores de muitas delas.
6. O PARAÍSO
O Paraíso, para onde
esperamos um dia chegar, será o lugar da alegria, onde a dor e a tristeza já
não existirão. Infelizmente uma religião triste transmitiu a ideia de um
paraíso cheio de monotonia (não é de estranhar que as piadas sobre o céu sejam
sem graça e aquelas sobre o inferno sejam mais divertidas). A casa de Deus deve
ser um lugar alegre e feliz. Sempre é possível imaginar que no Céu deve existir
um lugar onde Deus estará aí na plateia e no palco estarão os contadores de
anedotas e de historinhas para fazer o céu sorrir.
Conta-se, por isso, que um
dia bateu à porta do Paraíso um senhor. São Pedro examinou atentamente a sua
ficha e não conseguiu encontrar nele algo que o fizesse digno de merecer o
Paraíso. Mas o homem achava que tinha o direito de entrar. Deus ouvindo aquele
apelo insistente aproximou-se e perguntou-lhe:
“— Mas, na Terra, o que você
fez de bom e que pode repetir aqui no Céu?
— Contei piadas para fazer o
teu povo rir!
E o Pai Eterno o acolheu e o
abraçou dizendo:
— Filho meu, entra depressa,
há tanto tempo que esperávamos por você aqui!”
A literatura hebraica também
nos traz uma bonita história. Conta-se que um rabino recebeu a visita do
Profeta Elias, e perguntou a este:
“— Existe alguém nesta
região que seja digno de ter parte no mundo que virá?
— Não! — respondeu Elias.
Mas justamente naquele instante passaram dois irmãos. Logo que Elias os viu,
exclamou:
— Estes dois terão parte no
mundo que virá!
O rabino, cheio de
curiosidade, aproximou-se dos dois e lhes perguntou:
— O que vocês fazem na vida?
— Somos jograis, alegramos
os tristes e, se encontramos gente que briga, fazemos de tudo com as nossas
histórias para fazer com que façam as pazes!” (4)
7. SANTIDADE SORRIDENTE
Todos os santos e santas têm
a consciência de serem também grandes pecadores. Nem por isso, deixaram de
sorrir. Nem sempre a biografia dos santos nos conta este lado. Mas são belas as
histórias de São Felipe Néri, por exemplo. E lembramos São Francisco de Assis,
levando a sério a pobreza e radical no seguimento de Jesus, porém era amável
com os freis e com o povo. Francisco foi o cantor da Alegria e da Paz. E o
mesmo se pode dizer dos seus seguidores, como podemos ver na beleza e
criatividade dos “Fioretti” (5). Quem não se encanta com as histórias
protagonizadas por Frei Junípero?
Quando nos lembramos do Papa
João Paulo I, que esteve por apenas 33 dias como Papa, nos recordamos logo do
seu belo e amável sorriso. Ficou conhecido como o “Papa do sorriso!”. O Papa
Bento XVI, em entrevista à TV alemã no dia 13 de agosto de 2006, afirmou: “Eu
não sou um homem que tem facilidade de contar piadas. Mas saber ver o aspecto
divertido da vida e a sua dimensão alegre e não tomar tudo tão tragicamente,
isto considero muito importante e, mais, acho que isso é necessário para o meu
ministério”. Que bom que até o Papa busque este rosto sorridente para a
Igreja!
Podemos dizer verdades
sorrindo. Podemos ser cristãos brincando. Podemos fazer o bem com um sorriso.
Enfim, podemos e devemos ser cristãos alegres. São Francisco de Sales dizia que
“um cristão triste, é um triste cristão”. Madre Teresa de Calcutá ensinava que
“a alegria é o melhor meio para anunciar o cristianismo”. Santa Teresa D’Ávila
disse que “é melhor não abrir conventos do que enchê-los com freiras tristes”.
E São João Bosco afirmou: “Fique com Deus como o passarinho, que sente tremer o
galho e continua a cantar, porque que possui asas”.
O humor é um bom meio para
evangelizar. Com este tema a Pastoral Juvenil realizou em Santiago de
Compostela, em julho de 2005, um Curso para refletir sobre “Humor e
Evangelização”. É o único encontro deste tipo que tenho notícia. O sacerdote e
ilusionista José Manuel Carballo falou deste tema convencido de que “se o humor
é algo sadio para a pessoa e estimula a alegria, a religião está na mesma
onda”. Segundo Carballo, “na Bíblia se expressa a satisfação de Deus ao ver sua
criação; o anúncio de ‘uma grande alegria’ que os anjos trazem aos pastores; a
alegria com a qual saíam os que se haviam aproximado de Jesus com boa vontade.
Nós transmitimos a Boa Notícia do Reino de Deus e as boas notícias se dão com
boa cara. O bom humor é um bom meio para evangelizar”. Este sacerdote afirmou
que certa vez lhe pediram que não fizesse brincadeiras quando pregasse. Ele
respondeu que “prega quando faz brincadeiras” e que na sua atuação pastoral
também transmite uma mensagem e valores através do humor.
Como a sabedoria de Israel,
as anedotas bíblicas não têm dono. Elas pertencem ao povo. E devem servir ao
povo. Devem fazer o povo sorrir. Sorrir faz bem e é necessário sobretudo nestes
tempos de crise, de mudanças e vida amarga em que vivemos.
Precisamos recuperar uma
palavra grega antiga, já usada nos tempos de Aristóteles: Eutrapelia,
que significa: “alegria, sorriso, brincadeira, bom humor”. É a arte de fazer as
pessoas sorrirem e serem felizes. É uma virtude relacionada com a humildade e a
modéstia: ela nos ajuda a não dar demasiada importância aos soberbos e a não
sermos orgulhosos.
O bom humor não deve ofender
os outros, mas alegrar o coração. Nestes tempos de tantas crises e mudanças é
recomendável um pouco de diversão para levar a vida com mais leveza. A virtude
do bom humor nos ajuda no desapego dos bens e nos dá mais elegância espiritual
que permite apreciar o lado belo e engraçado da vida. Esta foi também a virtude
de todas as pessoas que se lançaram com entusiasmo na resposta ao convite de
Cristo.
Quanto bem está fazendo à
Igreja e ao mundo o rosto sorridente do Papa Francisco! Desde sua primeira
aparição como Papa ele transmite uma mensagem de esperança que contagia a
todos. Em suas viagens e encontros com as pessoas transmite o abraço fraterno e
o sorriso alegre. E sempre que pode conta suas belas anedotas. Tudo isso, sem
deixar de ser um grande profeta que denuncia as injustiças e anuncia a boa nova
do Evangelho. Não foi por acaso que a sua primeira Exortação Apostólica teve
como título “A alegria do Evangelho”. Somente na Introdução (nºs 1 a 18)
aparece mais de cinquenta vezes a palavra alegria. A Exortação começa
justamente assim: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira
daqueles que se encontram com Jesus”. Se o Papa João XXIII trouxe um vento novo
(aggiornamento) para a Igreja, o Papa Francisco trouxe de volta à
alegria do Evangelho, a “alegria trazida pelo Senhor da qual ninguém é
excluído” (EG 3).
___________
(2) Cf. Bíblia de Jerusalém,
nota de rodapé em Gn 17,17.
(3) Em torno ao século III
a.C, quando a Palestina vivia sob o domínio dos Ptolomeus. Israel pagava altos
tributos. Trabalhava-se muito e o povo vivia triste e sem esperança.
(4) Cf. Talmud Babilonese,
Taanith 22ª.
(5) O livro dos “Fioretti”
sobre essas belas e engraçadas estórias franciscanas pode ser encontrado na
Editora Vozes.
Artigo publicado
originalmente na Revista Grande Sinal: revista de espiritualidade. Petrópolis —
RJ: Vozes, v.70, n.6, p. 641-652, nov. 2016.
Imagem: "Missão Nóss". Direitos adquiridos.
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