O testemunho dos fatos: encontrar Deus em suas obras (Mt 11,2-11)
Contexto
O evangelho de Mateus pode ser dividido em várias seções. A perícope que
estudaremos hoje está na seção que vai de 11,2 a 12,45, que mostra as reações
de João Batista (11,2-19), dos galileus (11,20-24) e dos fariseus (12,1-45),
diante de Jesus que se revela como Messias. Trata-se do terceiro bloco de
textos narrativos de Mateus, que tem como tema geral a identidade de Jesus. O
bloco vai de 11,2 a 16,20 e contém a resposta para a pergunta: “quem é Jesus?”
No início do bloco (11,3), João manda perguntar a Jesus: “És tu [o Messias]…?”
e, na parte final (16,15-16), encontramos a pergunta de Jesus: “E vós, quem
dizeis que eu sou?”, seguida da profissão de fé de Pedro: “Tu és o Cristo
[Ungido/Messias], o Filho do Deus vivo!”.
Dividiremos nossa perícope em duas partes. A primeira, do versículo 2 ao
6, narra João Batista enviando dois de seus discípulos com um questionamento a
Jesus, bem como a resposta dada. A segunda, do versículo 7 ao 11, narra o que
acontece após a saída dos discípulos de João; é onde Jesus faz um elogio ao
profeta.
João faz uma pergunta decisiva, que pode gerar em nós outros
questionamentos: ele realmente precisa da confirmação do messianismo de Jesus
ou faz uma pergunta retórica, com a finalidade de colocar seus discípulos em
contato direto com o Messias? Teria João apenas usado essa indagação como
recurso pedagógico, para indicar a seus discípulos que seu tempo acabou e que,
dali para frente, eles deveriam seguir Jesus? Será que, mesmo crendo que Jesus
era o Messias, João teria ficado confuso com o que ouviu falar das suas obras?
Ou seria essa dúvida a dos discípulos de João e não do próprio profeta? Nós
vamos analisar essas possibilidades. Porém é importante dizer que a dúvida de
João não diminui em nada sua grandeza, pois, como diz Neotti (2019, p. 27), a
dúvida honesta está sempre no caminho da verdade.
A ênfase de Mateus está nas obras de Jesus, que revelam quem ele é. A
prática de Jesus aponta para a sua identidade messiânica. Dessa forma, Mateus
está querendo nos dizer que, para discernir quem é Jesus, devemos olhar para o
que ele fez e, diante de tal revelação, nos posicionarmos.
Comentário
João estava na prisão. Quando
ouviu falar das obras de Cristo, enviou-lhe alguns discípulos, para lhe
perguntarem: “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” Jesus
respondeu-lhes: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos
recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. Feliz aquele que
não se escandaliza por causa de mim!” (vv. 2-6)
João está preso na Fortaleza de Maqueronte (atual Jordânia) por
denunciar a união ilegítima do rei Herodes com Herodíades (ela era casada com
Filipe, irmão de Herodes). O profeta recebe a visita de seus discípulos, se
informa sobre a atuação pública de Jesus e envia dois dos discípulos com um
questionamento, de cuja resposta se saberá sobre a veracidade do suposto
messianismo de Jesus.
Sobre a chamada dúvida de João, vamos considerar algumas
possibilidades, tendo em vista que não há consenso entre os comentadores.
Partimos da suposição de que João realmente tinha a dúvida sobre o messianismo
de Jesus. Essa é a posição mais fraca, pois é difícil de acreditar que, após
anunciar que Jesus era o Messias, João tenha mudado de ideia. Ajuda-nos o
evangelho joanino (Jo 1,29-34), no qual vemos essa afirmação de João Batista,
na ocasião do batismo de Jesus. O argumento de que João tenha revisto sua
decisão também cai por terra na afirmação de Jesus nos versículos 7 ao 11 de
nossa perícope. A autoridade da palavra de Jesus garante que João não é um
caniço agitado pelo vento, ou seja, não é um homem de caráter fraco, que se
deixa levar por qualquer coisa, que muda de opinião com facilidade. Como ainda
veremos, Jesus chega a afirmar que João Batista é o maior de todos os homens
nascidos de mulher (v. 11).
Agora passamos a hipóteses mais plausíveis. Sabemos que João tinha muito
clara a sua missão de precursor do Messias e que, uma vez que tinha muitos
discípulos e pelo fato de acreditar que não sairia vivo de Maqueronte (como de
fato aconteceu), João resolve direcionar seus seguidores para o Messias. A
pergunta, portanto, não indica uma dúvida sobre o messianismo de Jesus, mas
pode ter sido usada pelo profeta como um recurso pedagógico. Sabendo de antemão
a resposta, João contava que, com um contato direto com Jesus, seus discípulos
seriam convencidos de que se tratava do Messias. O fato de João negar ser ele
próprio o Messias podia soar aos seus discípulos como mais uma prova do
contrário, de que o profeta assim falava por humildade. Em outras palavras, a dúvida
de João conteria em germe a própria afirmação do messianismo de Jesus.
Poderíamos também sugerir que os discípulos de João, após narrarem ao
profeta as obras que Jesus estava realizando, tenham feito essa pergunta ao
profeta, que os redirecionou a Jesus. Dessa forma, a dúvida não seria
propriamente de João, mas de seus discípulos. Talvez João tenha pensado que, se
suas palavras não tinham sido suficientes para convencê-los, o melhor seria
mudar de estratégia e mandá-los ouvir a resposta do próprio Jesus.
Entretanto, temos uma suposição mais forte do que aquelas que já
apresentamos. Para entendê-la, é preciso lermos novamente o anúncio que João
faz em Mateus 3,1-12, que é o texto que estudamos no Artigo 2. Nela observamos
que João anuncia um Messias muito severo, castigador dos pecadores, um juiz
muito duro. Mas a realidade não coincidiu com essas palavras do profeta e, ao
ouvir o que Jesus fazia, talvez João tenha se questionado sobre suas próprias
expectativas messiânicas. Aqui podemos afirmar que João não duvidava de Jesus,
mas ele se vê confuso com a sua atuação. Jesus se mostrou bem diferente do
líder rigoroso que João anunciara.
Jesus responde que chegou a hora do cumprimento. O que Isaías havia
profetizado, ele estava realizando. Ele não responde com teorias abstratas, mas
com a realidade. Jesus recorre ao testemunho dos fatos, superior ao das
palavras, revelando a grande desproporção entre o juiz anunciado por João
Batista e a sua atuação como Messias. Na resposta aos discípulos de João, Jesus
confirma que é o Messias enumerando seis sinais de seu ministério, que foram
anunciados por Isaías. Jesus evidencia o caráter salvífico de sua missão,
deixando de lado a pesada expectativa da condenação. Jesus não nega que haverá
julgamento e que alguns serão condenados, mas fala e atua de forma positiva,
enfatizando o amor e a misericórdia de Deus. Jesus cita algumas passagens de
Isaías para esclarecer a João que a inauguração da era messiânica se dá sob a
forma de ações positivas, benéficas e de salvação, não de violência e castigo.
Vejamos:
Quadro: Citações de Jesus do
livro de Isaías em Mateus 11,5
JESUS DIZ EM MATEUS 11,5 |
CITANDO ISAÍAS |
Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são
purificados e os surdos ouvem... |
29,18: Naquele dia os surdos ouvirão o que se lê e os olhos dos cegos,
livres da escuridão e das trevas, tornarão a ver. 35,5-6: Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se
desobstruirão. Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará
canções alegres. |
Os mortos ressuscitam... |
26,19: Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão... |
Os pobres são evangelizados. |
29,19: Os pobres terão maior alegria em Iahweh, os indigentes da terra se
regozijarão no Santo de Israel. 61,1: O espírito do Senhor está sobre mim, porque Iahweh me ungiu;
enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres... |
A resposta de Jesus aos discípulos de João relembra, na ordem, os
episódios narrados em 9,27-31 (os cegos recuperam a visão), 9,1-8 (os coxos
andam), 8,1-4 (os leprosos são limpos), 9,32-34 (os surdos ouvem),
9,18-19.23-26 (os mortos são ressuscitados) e 4,23; 9,35 (a boa nova é
anunciada aos pobres).
No evangelho sinótico de Lucas podemos ver que, além de não ser tão duro
assim com os considerados “impuros” e “injustos”, Jesus, ao contrário, se
aproxima deles e fica conhecido como “amigo dos pecadores” (cf. Lc 7,34). Na
Bíblia, muitas vezes a justiça é sinônimo de cumprimento da Lei.
Portanto, os injustos são os que não a cumpriam, seja por vontade própria (o
que era muito difícil de acontecer) ou então por questões conjunturais da
sociedade da época, que privilegiava uma pequena parcela da população
(geralmente os líderes religiosos e suas famílias) em detrimento da maioria
que, em geral, era pobre. O culto muitas vezes era dispendioso, sendo
impraticável para os pobres. Por exemplo, uma mulher gastava muito dos seus
recursos para estar “pura”, pois sempre que tivesse filhos ou menstruasse,
deveria oferecer um sacrifício para sua purificação. Mesmo a Lei prevendo
ofertas mais simples para os pobres, como no caso da oferta de José e Maria em
Lc 2,24, a quantidade de normas e preceitos era tanta que, não estar impuro por
qualquer coisa que fosse, era quase impossível. Esse era o fardo que nem mesmo
os dirigentes podiam carregar, mas que obrigavam o povo a fazê-lo, como vemos
nas palavras de Jesus em Mateus 23,4. Jesus faz guerra ao pecado, procurando
salvar o pecador, dando-lhe sempre uma nova oportunidade. Jesus trouxe e traz
esperança para o que temos por perdido, pois ele não destrói, mas procura
consertar o que está danificado.
João nos dá como exemplo uma preciosa experiência com a novidade de
Deus, sua postura nos ensina que, em nossa caminhada, teremos nossos momentos
de dúvidas, de vacilo na fé, onde pode ser que caiamos em pecados que jamais
imaginávamos sermos capazes de cometer, que poderemos errar em nossas previsões
e muitas vezes corremos o risco de anunciar um Deus que não corresponde ao
apresentado nos evangelhos. Esse é um convite para que possamos fugir do perigo
das respostas prontas, das palavras não fundadas na realidade, da imposição de
dogmas pessoais, da postura orgulhosa de quem se vê como quem não erra e está
sempre pronto a emitir sentenças de condenação. Não podemos ser cristãos de
palmatória na mão. Se Jesus ensinou e viveu a misericórdia, se João teve a humildade
de reconhecer e expor suas dúvidas, como você acha que nós, cristãos, devemos
ser? Infelizmente, há aqueles que se dizem cristãos e que se sentem melhores e
superiores a Cristo.
Mesmo diante da dúvida de João, Jesus o enaltece, descrevendo-o como um
homem de fibra, que não se verga conforme as modas (os ventos), que não é
oportunista e não se submete aos poderes corruptos só para ter ganhos pessoais.
João não era como os poderosos que esbanjam luxo às custas da miséria dos
pobres. João era um profeta e mais que um profeta. Curiosamente, Jesus termina
seu discurso dizendo que o menor no Reino dos Céus, ou seja, aquele que
entendeu a dinâmica de Jesus e se faz pequeno, que entendeu que Jesus veio
salvar e não condenar, é maior (não melhor) que João. Veremos isso mais à
frente.
Hoje é muito comum ver na televisão e internet, os “famosos da semana”
que se gabam e se orgulham de terem “vencido na vida”. Um olhar mais cuidadoso
poderá verificar em tais discursos a simples identificação de “vitória na vida”
com acúmulo de dinheiro e estabilidade financeira. Ser vitorioso, hoje, na
mentalidade mundana, é ter simplesmente um bom saldo bancário. Demorando um
pouco mais o olhar nesse exemplo, vemos que na maioria das vezes a origem do
ganho dos recursos está na propagação da negação das virtudes e exaltação dos
vícios… E o pior é que, geralmente no final de tais discursos, Deus é colocado
como Aquele que ajuda e incentiva tais posturas. São pessoas que têm como ídolo
a própria imagem, seja a que está diante do espelho ou a que divulgam fantasiosamente
nas redes sociais. Elas demonstram não compreender o engano que cometem ao
colocar Deus como incentivador de posturas contrárias ao Evangelho. Como
dissemos acima, Jesus em nenhum momento autorizou o homem a viver como um
animal, que não tem consciência do pecado, mas deixa sempre a porta aberta para
que cada um possa recomeçar após cada queda. Jesus ama o pecador e, por isso
mesmo, deseja que este abandone seu pecado e comece uma vida nova no Evangelho.
Existe uma diferença entre vencer na vida e vencer na Vida, com
“V” maiúsculo. Este último, significa vencer em Deus, que é caminho,
verdade e vida verdadeira. É vencer segundo os critérios evangélicos, pautando
suas escolhas segundo o projeto de Deus para um mundo novo.
Com a resposta de Jesus aos discípulos de João, vemos novamente presente
o convite de Jesus a olharmos com discernimento para a vida que acontece diante
de nossos olhos. Em outras palavras, Jesus responde: “digam a João o que os
olhos de vocês estão vendo e comparem com as Escrituras”. Para Bortolini (2006,
p. 22), a presença do Reino dos Céus é uma questão de discernimento: só quem
“ouve” e “vê” as obras de Jesus será capaz de perceber que ele é o Messias. Em
Jesus, aprendemos que Deus não é um castigador ou um fiscal dos nossos pecados.
Jesus deseja transformar o que está errado ou, como veremos no próximo artigo,
Ele vem salvar o povo de seus pecados.
Como vimos, a atuação de Jesus deixou João Batista desconcertado, de um
modo inesperado e desorientador. Jesus abre um horizonte de esperança para os
pecadores. Jesus não se apresenta como um justiceiro sedento de sangue. Pelo
contrário, ele oferece aos pecadores a sua amizade e perdão. As curas operadas
por Jesus não são movidas por sensacionalismo, mas por compaixão. Deus é amigo
da vida digna. O Reino dos Céus é também esse projeto humanizador das relações.
Jesus não anuncia um messianismo triunfalista, mas a sua ação concreta e
pessoal na vida dos que sofrem e são excluídos. (Pagola, 2019, p. 15)
Bento XVI, em uma homilia sua de 2010, refletia sobre como a humanidade
ao longo dos tempos viu surgir falsos profetas, ideólogos e ditadores, todos
afirmando de si mesmos que eram os enviados por Deus para mudar o mundo. E de
fato mudaram, mas para pior, com consequências devastadoras. Todas as suas
promessas resultaram em desilusão e vazio. Jesus não realizou uma revolução
cruenta, não mudou o mundo pela força, mas acendeu luzes para iluminar os
caminhos dos homens de boa vontade. Bento ainda cita alguns santos como
exemplos dessas luzes: Maximiliano Kolbe que, no campo de concentração nazista,
deu a vida em lugar de um pai de família; Teresa de Calcutá, que levou luz à
vida tenebrosa de tantos miseráveis; e tantos outros santos que realizaram a
revolução de Jesus em seus ambientes de vida. Essas são pequenas revoluções
que, se somadas, podem mudar o mundo. Por fim, Bento XVI nos convida a sermos
revolucionários da luz silenciosa acesa por Jesus, que é a luz da verdade e da
caridade. Quando nos fazemos próximos de quem sofre, fazemos com que estes
sintam que Deus também está próximo. Deus vem a eles quando nós vamos ao
seu encontro. Deus os ajuda por nossas mãos. As grandes promessas e revoluções
violentas do mundo são um nada diante da verdade do Evangelho.
Em uma leitura espiritual, Ambrósio[1] sugere
que os dois discípulos enviados por João são símbolos de dois povos: um, o dos
judeus que creram; o outro, o dos gentios.
Os discípulos de João partiram,
e Jesus começou a falar às multidões, sobre João: “O que fostes ver no deserto?
Um caniço agitado pelo vento? O que fostes ver? Um homem vestido com roupas
finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. Então, o que
fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos afirmo, e alguém que é mais do que profeta.
É dele que está escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai
preparar o teu caminho diante de ti’. Em verdade vos digo, de todos os homens
que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no
Reino dos Céus é maior do que ele”. (vv. 7-11)
Não era mais possível ouvir a pregação de João no deserto. Como vimos,
Ele estava preso a mando de Herodes. Por isso que Jesus se refere à ação no
passado: “Que fostes ver?” Em seguida, faz duas perguntas retóricas, cujas
respostas seriam “não”, pois João não é um caniço agitado pelo vento e
nem era um homem vestido com roupas finas. Carter (2021, p. 326) traduz
“caniço” por “junco”, e nota que o junco era o símbolo de Herodes Antipas nas
moedas comemorativas da fundação de Tiberíades. Assim, Jesus estaria revelando
a distância que existe entre João e Herodes, não havendo nenhuma relação de
similaridade entre eles. Herodes é fraco moralmente e corrupto, vive de forma
ilegítima com a cunhada e prendeu injustamente João por denunciar sua condição.
João, por sua vez, não se deixa intimidar pelos fortes do mundo, pois ele é
forte moralmente e sustenta a verdade com o preço de sua vida. Enquanto Herodes
vivia no luxo e opulência, com suas roupas finas, João era sóbrio e fiel
à vontade de Deus. Sobre essas perguntas de Jesus, discorre alegoricamente
Hilário de Poitiers:
A cana simboliza o homem que
aparenta a beleza e a glória do mundo, mas que não tem, em seu interior, o
fruto da verdade; agradável por fora, vazio por dentro; é flexível a todos os
ventos, isto é, ao sopro dos espíritos imundos; é inconstante, não tem força
para ficar firme e parado e a medula de sua alma é vazia. A veste significa o
corpo do qual a alma é revestida, que amolece com o luxo e a lascívia. Os reis
são os anjos transgressores, porque eles são poderosos no século e dominam o
mundo, e por isso habitam em suas casas os que vestem roupas finas, ou seja,
aqueles cujos corpos se tornaram lânguidos e depravados por causa do luxo, e
são, obviamente, habitação dos demônios. (In Matthaeum, 11)
Jesus insiste na pergunta: “Que fostes ver?” e a repete por três vezes.
Na Bíblia, esse recurso serve como instrumento para enfatizar determinado
assunto. Jesus insiste na visão e remete às intenções de seus ouvintes:
o que os movia para ouvir João? Com que propósito procuravam o profeta no
deserto? Após dizer o que João não era, Jesus diz que o Batista era
profeta, mais do que um profeta, o maior homem nascido de mulher e menor que o
menor do Reino dos Céus. Em seu discurso, Jesus elogia a consistência moral e
profética de João e cita o livro do Êxodo (23,20): “Eis que vou enviar o meu
mensageiro diante de ti…” e o profeta Malaquias (3,1): “Eis que enviarei meu
mensageiro para que prepare um caminho diante de mim…”, apontando a atuação de
João como cumprimento. O contexto de Malaquias 3,1 é a libertação do povo do
exílio da Babilônia, o que alimentava a esperança dos judeus em vista da
libertação da opressão romana (tema trabalhado no Apocalipse de João).
Como precursor, João é mais do que profeta, porque predisse o que viria
depois dele e o apontou, revelando-o[1]. Porém,
seguindo a lógica do menor/maior de Jesus, João não supera o menor dos
discípulos de Jesus na Nova Aliança. Pois, até João, todos viveram o tempo da promessa
(espera) e, em Jesus, todos vivem o tempo da realização. Bortolini (2006, p.
22) sugere que o menor do Reino pode ser o próprio Jesus, que se colocou
a serviço de João e de todos os homens. Na lógica de poder/serviço de Jesus, o
menor é o maior. Outros opinam que Jesus se referia aos apóstolos, como sendo
esses “menores maiores” que João. Neotti (2019, p. 25) afirma que, elogiando
João Batista, Jesus elogia a todos que creem no Evangelho e vivem segundo seus
princípios. Dessa forma, entendemos que o Reino dos Céus acontece no homem.
No versículo 6, Jesus afirma: “Bem-aventurado aquele para quem eu não
for ocasião de queda!”, indicando que é feliz aquele que não se escandaliza
diante da maneira como Ele se apresentou como o Messias. João deveria notar que
o grande sinal da manifestação do Messias era o amor pela vida e o cuidado pela
salvação do próximo. No lugar do temível juízo devastador, o perdão e a amizade
de Deus devem ser anunciados.
Em sua vida pública, Jesus enfrentou muita incompreensão. O
discernimento que ele nos pede é o de que não nos escandalizemos com suas ações
e com os destinatários de sua obra. O Reino dos Céus é o lugar onde todos têm
dignidade, não é um império opressor, que privilegia uma elite soberba às
custas da miséria da grande maioria. Quem entende, acolhe e imita Jesus, é
feliz, ou seja, bem-aventurado. Ao contrário, aquele que se escandaliza com a
prática de Jesus não consegue ser feliz, vive em busca de ilusões, não é
bem-aventurado.
São Gregório Magno traduz as palavras de Jesus nos seguintes termos: “Em
verdade, eu faço coisas maravilhosas, mas não me recuso a sofrer as mais
abjetas. Uma vez que, morrendo, eu te sigo, os homens que veneram meus milagres
devem cuidar para não me desprezar em minha morte[2]”.
Reflexão
1)
Hoje, muitos se escandalizam com as palavras e atitudes de Jesus, pois querem
uma justiça pautada no pensamento humano. Teresinha de Jesus dizia que, se Deus
é justo, tanto mais é Misericordioso, pois, sendo justo, não julgará só o crime
cometido em si, mas as fraquezas inerentes à natureza humana que favoreceram
sua consumação. Deus vê o homem todo. O Deus revelado em Jesus Cristo não pode
ser medido pelos nossos sentimentos. Esse Deus lhe escandaliza? O que você
entende por juízo e misericórdia?
2)
Neotti (2019, p. 26) afirma que todo aquele que melhorar a sorte do homem na
terra construirá o Reino dos Céus. A partir disso, questiona: como falar do
Reino dos Céus, em um país autodeclarado de maioria cristã, enquanto tantos
vivem na miséria, onde a maioria da população vive com fome de pão, de paz e de
dignidade?
3)
A pergunta de João pode ser traduzida em nossas vidas: eu creio verdadeiramente
que Jesus é o Messias em quem eu devo crer? Eu o aceito como meu salvador?
4)
Paredes (2011, p. 15) afirma que na esperança também é necessário o
discernimento, pois podemos nos enganar na espera. João, ao perceber que suas
expectativas não coincidiam com a realidade da atuação de Jesus, se coloca como
aquele que está aberto a purificar seus anseios e a acolher a novidade do
evangelho… E você, como lida com as suas frustrações? Tudo tem que ser do seu
jeito, inclusive Deus?
Notas
[1] In Lucam, 7.
[2] São Gregório Magno, Homiliae in Evangelia, 6,5.
Referências
AQUINO,
Santo Tomás de. Catena Aurea: exposição contínua sobre os evangelhos:
Vol. 1: Evangelho de São Mateus. Campinas, SP: Ecclesiae, 2018.
ARMELINI,
Fernando. Celebrando a Palavra: Ano A; [tradução de Comercindo B. Dalla
Costa]. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2011.
A Bíblia: Novo
Testamento. – São Paulo: Paulinas, 2015.
Bíblia de
Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia de
Navarra: Santos Evangelhos. 1 ed. São Paulo: Quadrante Editora, 2022.
Bíblia do
Peregrino. Com anotações de Luís Alonso Schokel. São Paulo: Paulus, 2000.
BORTOLINI,
José. Roteiros Homiléticos: Anos A, B, C, Festas e Solenidades. São
Paulo: Paulus, 2006.
CANTALAMESSA,
Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall’Alba]. – São
Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.
CARTER,
Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso
a partir das margens. Tradução de Walter Lisboa. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2021.
Coleção Grande Comentário Bíblico.
HAHN,
Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Denis. O evangelho de São Mateus –
Cadernos de estudo bíblico; [tradução de Thomaz Perroni] – Campinas, SP:
Ecclesiae, 2014.
Missal
Dominical: Missal da assembleia cristã. São Paulo: Paulus, 1995.
NEOTTI,
Clarêncio. Ministério da Palavra – Ano A: comentário aos evangelhos
dominicais e festivos – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.
PAPA BENTO
XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo/Bento XVI: o ano litúrgico
pregado por Bento XVI, tomo I: Ano A. 1a edição; tradução oficial da Santa Sé
revisada. São Paulo: Molokai, 2017.
PAREDES,
José Cristo Rey García. A Liturgia da Palavra comentada: Anos A, B e C.
Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2011.
STORNIOLO,
Ivo. Como ler o evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo:
Paulus, 1991.
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