O testemunho dos fatos: encontrar Deus em suas obras (Mt 11,2-11)

Por: - 07 de dezembro de 2022

Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)

João anunciou um Messias muito severo, castigador dos pecadores, um juiz muito duro. Mas a realidade não coincidiu com essas palavras do profeta e, ao ouvir o que Jesus fazia, talvez João tenha se questionado sobre suas próprias expectativas messiânicas. João não duvidava de Jesus, mas ele se vê confuso com a sua atuação. Jesus se mostrou bem diferente do líder rigoroso anunciado. 
Na liturgia, encontramos este evangelho no 3º Domingo do Advento - Ano A.

Contexto

O evangelho de Mateus pode ser dividido em várias seções. A perícope que estudaremos hoje está na seção que vai de 11,2 a 12,45, que mostra as reações de João Batista (11,2-19), dos galileus (11,20-24) e dos fariseus (12,1-45), diante de Jesus que se revela como Messias. Trata-se do terceiro bloco de textos narrativos de Mateus, que tem como tema geral a identidade de Jesus. O bloco vai de 11,2 a 16,20 e contém a resposta para a pergunta: “quem é Jesus?” No início do bloco (11,3), João manda perguntar a Jesus: “És tu [o Messias]…?” e, na parte final (16,15-16), encontramos a pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?”, seguida da profissão de fé de Pedro: “Tu és o Cristo [Ungido/Messias], o Filho do Deus vivo!”.

Dividiremos nossa perícope em duas partes. A primeira, do versículo 2 ao 6, narra João Batista enviando dois de seus discípulos com um questionamento a Jesus, bem como a resposta dada. A segunda, do versículo 7 ao 11, narra o que acontece após a saída dos discípulos de João; é onde Jesus faz um elogio ao profeta.

João faz uma pergunta decisiva, que pode gerar em nós outros questionamentos: ele realmente precisa da confirmação do messianismo de Jesus ou faz uma pergunta retórica, com a finalidade de colocar seus discípulos em contato direto com o Messias? Teria João apenas usado essa indagação como recurso pedagógico, para indicar a seus discípulos que seu tempo acabou e que, dali para frente, eles deveriam seguir Jesus? Será que, mesmo crendo que Jesus era o Messias, João teria ficado confuso com o que ouviu falar das suas obras? Ou seria essa dúvida a dos discípulos de João e não do próprio profeta? Nós vamos analisar essas possibilidades. Porém é importante dizer que a dúvida de João não diminui em nada sua grandeza, pois, como diz Neotti (2019, p. 27), a dúvida honesta está sempre no caminho da verdade.

A ênfase de Mateus está nas obras de Jesus, que revelam quem ele é. A prática de Jesus aponta para a sua identidade messiânica. Dessa forma, Mateus está querendo nos dizer que, para discernir quem é Jesus, devemos olhar para o que ele fez e, diante de tal revelação, nos posicionarmos.

 

Comentário

João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de Cristo, enviou-lhe alguns discípulos, para lhe perguntarem: “És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” Jesus respondeu-lhes: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (vv. 2-6)

João está preso na Fortaleza de Maqueronte (atual Jordânia) por denunciar a união ilegítima do rei Herodes com Herodíades (ela era casada com Filipe, irmão de Herodes). O profeta recebe a visita de seus discípulos, se informa sobre a atuação pública de Jesus e envia dois dos discípulos com um questionamento, de cuja resposta se saberá sobre a veracidade do suposto messianismo de Jesus.

Sobre a chamada dúvida de João, vamos considerar algumas possibilidades, tendo em vista que não há consenso entre os comentadores. Partimos da suposição de que João realmente tinha a dúvida sobre o messianismo de Jesus. Essa é a posição mais fraca, pois é difícil de acreditar que, após anunciar que Jesus era o Messias, João tenha mudado de ideia. Ajuda-nos o evangelho joanino (Jo 1,29-34), no qual vemos essa afirmação de João Batista, na ocasião do batismo de Jesus. O argumento de que João tenha revisto sua decisão também cai por terra na afirmação de Jesus nos versículos 7 ao 11 de nossa perícope. A autoridade da palavra de Jesus garante que João não é um caniço agitado pelo vento, ou seja, não é um homem de caráter fraco, que se deixa levar por qualquer coisa, que muda de opinião com facilidade. Como ainda veremos, Jesus chega a afirmar que João Batista é o maior de todos os homens nascidos de mulher (v. 11).

Agora passamos a hipóteses mais plausíveis. Sabemos que João tinha muito clara a sua missão de precursor do Messias e que, uma vez que tinha muitos discípulos e pelo fato de acreditar que não sairia vivo de Maqueronte (como de fato aconteceu), João resolve direcionar seus seguidores para o Messias. A pergunta, portanto, não indica uma dúvida sobre o messianismo de Jesus, mas pode ter sido usada pelo profeta como um recurso pedagógico. Sabendo de antemão a resposta, João contava que, com um contato direto com Jesus, seus discípulos seriam convencidos de que se tratava do Messias. O fato de João negar ser ele próprio o Messias podia soar aos seus discípulos como mais uma prova do contrário, de que o profeta assim falava por humildade. Em outras palavras, a dúvida de João conteria em germe a própria afirmação do messianismo de Jesus.

Poderíamos também sugerir que os discípulos de João, após narrarem ao profeta as obras que Jesus estava realizando, tenham feito essa pergunta ao profeta, que os redirecionou a Jesus. Dessa forma, a dúvida não seria propriamente de João, mas de seus discípulos. Talvez João tenha pensado que, se suas palavras não tinham sido suficientes para convencê-los, o melhor seria mudar de estratégia e mandá-los ouvir a resposta do próprio Jesus.

Entretanto, temos uma suposição mais forte do que aquelas que já apresentamos. Para entendê-la, é preciso lermos novamente o anúncio que João faz em Mateus 3,1-12, que é o texto que estudamos no Artigo 2. Nela observamos que João anuncia um Messias muito severo, castigador dos pecadores, um juiz muito duro. Mas a realidade não coincidiu com essas palavras do profeta e, ao ouvir o que Jesus fazia, talvez João tenha se questionado sobre suas próprias expectativas messiânicas. Aqui podemos afirmar que João não duvidava de Jesus, mas ele se vê confuso com a sua atuação. Jesus se mostrou bem diferente do líder rigoroso que João anunciara.

Jesus responde que chegou a hora do cumprimento. O que Isaías havia profetizado, ele estava realizando. Ele não responde com teorias abstratas, mas com a realidade. Jesus recorre ao testemunho dos fatos, superior ao das palavras, revelando a grande desproporção entre o juiz anunciado por João Batista e a sua atuação como Messias. Na resposta aos discípulos de João, Jesus confirma que é o Messias enumerando seis sinais de seu ministério, que foram anunciados por Isaías. Jesus evidencia o caráter salvífico de sua missão, deixando de lado a pesada expectativa da condenação. Jesus não nega que haverá julgamento e que alguns serão condenados, mas fala e atua de forma positiva, enfatizando o amor e a misericórdia de Deus. Jesus cita algumas passagens de Isaías para esclarecer a João que a inauguração da era messiânica se dá sob a forma de ações positivas, benéficas e de salvação, não de violência e castigo. Vejamos:

 

Quadro: Citações de Jesus do livro de Isaías em Mateus 11,5

JESUS DIZ EM MATEUS 11,5

CITANDO ISAÍAS

Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem...

29,18: Naquele dia os surdos ouvirão o que se lê e os olhos dos cegos, livres da escuridão e das trevas, tornarão a ver.

35,5-6: Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se desobstruirão. Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará canções alegres.

Os mortos ressuscitam...

26,19: Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão...

Os pobres são evangelizados.

29,19: Os pobres terão maior alegria em Iahweh, os indigentes da terra se regozijarão no Santo de Israel.

61,1: O espírito do Senhor está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres...

 

A resposta de Jesus aos discípulos de João relembra, na ordem, os episódios narrados em 9,27-31 (os cegos recuperam a visão), 9,1-8 (os coxos andam), 8,1-4 (os leprosos são limpos), 9,32-34 (os surdos ouvem), 9,18-19.23-26 (os mortos são ressuscitados) e 4,23; 9,35 (a boa nova é anunciada aos pobres).

No evangelho sinótico de Lucas podemos ver que, além de não ser tão duro assim com os considerados “impuros” e “injustos”, Jesus, ao contrário, se aproxima deles e fica conhecido como “amigo dos pecadores” (cf. Lc 7,34). Na Bíblia, muitas vezes a justiça é sinônimo de cumprimento da Lei. Portanto, os injustos são os que não a cumpriam, seja por vontade própria (o que era muito difícil de acontecer) ou então por questões conjunturais da sociedade da época, que privilegiava uma pequena parcela da população (geralmente os líderes religiosos e suas famílias) em detrimento da maioria que, em geral, era pobre. O culto muitas vezes era dispendioso, sendo impraticável para os pobres. Por exemplo, uma mulher gastava muito dos seus recursos para estar “pura”, pois sempre que tivesse filhos ou menstruasse, deveria oferecer um sacrifício para sua purificação. Mesmo a Lei prevendo ofertas mais simples para os pobres, como no caso da oferta de José e Maria em Lc 2,24, a quantidade de normas e preceitos era tanta que, não estar impuro por qualquer coisa que fosse, era quase impossível. Esse era o fardo que nem mesmo os dirigentes podiam carregar, mas que obrigavam o povo a fazê-lo, como vemos nas palavras de Jesus em Mateus 23,4. Jesus faz guerra ao pecado, procurando salvar o pecador, dando-lhe sempre uma nova oportunidade. Jesus trouxe e traz esperança para o que temos por perdido, pois ele não destrói, mas procura consertar o que está danificado.

João nos dá como exemplo uma preciosa experiência com a novidade de Deus, sua postura nos ensina que, em nossa caminhada, teremos nossos momentos de dúvidas, de vacilo na fé, onde pode ser que caiamos em pecados que jamais imaginávamos sermos capazes de cometer, que poderemos errar em nossas previsões e muitas vezes corremos o risco de anunciar um Deus que não corresponde ao apresentado nos evangelhos. Esse é um convite para que possamos fugir do perigo das respostas prontas, das palavras não fundadas na realidade, da imposição de dogmas pessoais, da postura orgulhosa de quem se vê como quem não erra e está sempre pronto a emitir sentenças de condenação. Não podemos ser cristãos de palmatória na mão. Se Jesus ensinou e viveu a misericórdia, se João teve a humildade de reconhecer e expor suas dúvidas, como você acha que nós, cristãos, devemos ser? Infelizmente, há aqueles que se dizem cristãos e que se sentem melhores e superiores a Cristo.

Mesmo diante da dúvida de João, Jesus o enaltece, descrevendo-o como um homem de fibra, que não se verga conforme as modas (os ventos), que não é oportunista e não se submete aos poderes corruptos só para ter ganhos pessoais. João não era como os poderosos que esbanjam luxo às custas da miséria dos pobres. João era um profeta e mais que um profeta. Curiosamente, Jesus termina seu discurso dizendo que o menor no Reino dos Céus, ou seja, aquele que entendeu a dinâmica de Jesus e se faz pequeno, que entendeu que Jesus veio salvar e não condenar, é maior (não melhor) que João. Veremos isso mais à frente.

Hoje é muito comum ver na televisão e internet, os “famosos da semana” que se gabam e se orgulham de terem “vencido na vida”. Um olhar mais cuidadoso poderá verificar em tais discursos a simples identificação de “vitória na vida” com acúmulo de dinheiro e estabilidade financeira. Ser vitorioso, hoje, na mentalidade mundana, é ter simplesmente um bom saldo bancário. Demorando um pouco mais o olhar nesse exemplo, vemos que na maioria das vezes a origem do ganho dos recursos está na propagação da negação das virtudes e exaltação dos vícios… E o pior é que, geralmente no final de tais discursos, Deus é colocado como Aquele que ajuda e incentiva tais posturas. São pessoas que têm como ídolo a própria imagem, seja a que está diante do espelho ou a que divulgam fantasiosamente nas redes sociais. Elas demonstram não compreender o engano que cometem ao colocar Deus como incentivador de posturas contrárias ao Evangelho. Como dissemos acima, Jesus em nenhum momento autorizou o homem a viver como um animal, que não tem consciência do pecado, mas deixa sempre a porta aberta para que cada um possa recomeçar após cada queda. Jesus ama o pecador e, por isso mesmo, deseja que este abandone seu pecado e comece uma vida nova no Evangelho. Existe uma diferença entre vencer na vida e vencer na Vida, com “V” maiúsculo. Este último, significa vencer em Deus, que é caminho, verdade e vida verdadeira. É vencer segundo os critérios evangélicos, pautando suas escolhas segundo o projeto de Deus para um mundo novo.

Com a resposta de Jesus aos discípulos de João, vemos novamente presente o convite de Jesus a olharmos com discernimento para a vida que acontece diante de nossos olhos. Em outras palavras, Jesus responde: “digam a João o que os olhos de vocês estão vendo e comparem com as Escrituras”. Para Bortolini (2006, p. 22), a presença do Reino dos Céus é uma questão de discernimento: só quem “ouve” e “vê” as obras de Jesus será capaz de perceber que ele é o Messias. Em Jesus, aprendemos que Deus não é um castigador ou um fiscal dos nossos pecados. Jesus deseja transformar o que está errado ou, como veremos no próximo artigo, Ele vem salvar o povo de seus pecados.

Como vimos, a atuação de Jesus deixou João Batista desconcertado, de um modo inesperado e desorientador. Jesus abre um horizonte de esperança para os pecadores. Jesus não se apresenta como um justiceiro sedento de sangue. Pelo contrário, ele oferece aos pecadores a sua amizade e perdão. As curas operadas por Jesus não são movidas por sensacionalismo, mas por compaixão. Deus é amigo da vida digna. O Reino dos Céus é também esse projeto humanizador das relações. Jesus não anuncia um messianismo triunfalista, mas a sua ação concreta e pessoal na vida dos que sofrem e são excluídos. (Pagola, 2019, p. 15)

Bento XVI, em uma homilia sua de 2010, refletia sobre como a humanidade ao longo dos tempos viu surgir falsos profetas, ideólogos e ditadores, todos afirmando de si mesmos que eram os enviados por Deus para mudar o mundo. E de fato mudaram, mas para pior, com consequências devastadoras. Todas as suas promessas resultaram em desilusão e vazio. Jesus não realizou uma revolução cruenta, não mudou o mundo pela força, mas acendeu luzes para iluminar os caminhos dos homens de boa vontade. Bento ainda cita alguns santos como exemplos dessas luzes: Maximiliano Kolbe que, no campo de concentração nazista, deu a vida em lugar de um pai de família; Teresa de Calcutá, que levou luz à vida tenebrosa de tantos miseráveis; e tantos outros santos que realizaram a revolução de Jesus em seus ambientes de vida. Essas são pequenas revoluções que, se somadas, podem mudar o mundo. Por fim, Bento XVI nos convida a sermos revolucionários da luz silenciosa acesa por Jesus, que é a luz da verdade e da caridade. Quando nos fazemos próximos de quem sofre, fazemos com que estes sintam que Deus também está próximo. Deus vem a eles quando nós vamos ao seu encontro. Deus os ajuda por nossas mãos. As grandes promessas e revoluções violentas do mundo são um nada diante da verdade do Evangelho.

Em uma leitura espiritual, Ambrósio[1] sugere que os dois discípulos enviados por João são símbolos de dois povos: um, o dos judeus que creram; o outro, o dos gentios.

 

Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões, sobre João: “O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. Então, o que fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos afirmo, e alguém que é mais do que profeta. É dele que está escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti’. Em verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele”. (vv. 7-11)

Não era mais possível ouvir a pregação de João no deserto. Como vimos, Ele estava preso a mando de Herodes. Por isso que Jesus se refere à ação no passado: “Que fostes ver?” Em seguida, faz duas perguntas retóricas, cujas respostas seriam “não”, pois João não é um caniço agitado pelo vento e nem era um homem vestido com roupas finas. Carter (2021, p. 326) traduz “caniço” por “junco”, e nota que o junco era o símbolo de Herodes Antipas nas moedas comemorativas da fundação de Tiberíades. Assim, Jesus estaria revelando a distância que existe entre João e Herodes, não havendo nenhuma relação de similaridade entre eles. Herodes é fraco moralmente e corrupto, vive de forma ilegítima com a cunhada e prendeu injustamente João por denunciar sua condição. João, por sua vez, não se deixa intimidar pelos fortes do mundo, pois ele é forte moralmente e sustenta a verdade com o preço de sua vida. Enquanto Herodes vivia no luxo e opulência, com suas roupas finas, João era sóbrio e fiel à vontade de Deus. Sobre essas perguntas de Jesus, discorre alegoricamente Hilário de Poitiers:

A cana simboliza o homem que aparenta a beleza e a glória do mundo, mas que não tem, em seu interior, o fruto da verdade; agradável por fora, vazio por dentro; é flexível a todos os ventos, isto é, ao sopro dos espíritos imundos; é inconstante, não tem força para ficar firme e parado e a medula de sua alma é vazia. A veste significa o corpo do qual a alma é revestida, que amolece com o luxo e a lascívia. Os reis são os anjos transgressores, porque eles são poderosos no século e dominam o mundo, e por isso habitam em suas casas os que vestem roupas finas, ou seja, aqueles cujos corpos se tornaram lânguidos e depravados por causa do luxo, e são, obviamente, habitação dos demônios. (In Matthaeum, 11)

Jesus insiste na pergunta: “Que fostes ver?” e a repete por três vezes. Na Bíblia, esse recurso serve como instrumento para enfatizar determinado assunto. Jesus insiste na visão e remete às intenções de seus ouvintes: o que os movia para ouvir João? Com que propósito procuravam o profeta no deserto? Após dizer o que João não era, Jesus diz que o Batista era profeta, mais do que um profeta, o maior homem nascido de mulher e menor que o menor do Reino dos Céus. Em seu discurso, Jesus elogia a consistência moral e profética de João e cita o livro do Êxodo (23,20): “Eis que vou enviar o meu mensageiro diante de ti…” e o profeta Malaquias (3,1): “Eis que enviarei meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim…”, apontando a atuação de João como cumprimento. O contexto de Malaquias 3,1 é a libertação do povo do exílio da Babilônia, o que alimentava a esperança dos judeus em vista da libertação da opressão romana (tema trabalhado no Apocalipse de João).

Como precursor, João é mais do que profeta, porque predisse o que viria depois dele e o apontou, revelando-o[1]. Porém, seguindo a lógica do menor/maior de Jesus, João não supera o menor dos discípulos de Jesus na Nova Aliança. Pois, até João, todos viveram o tempo da promessa (espera) e, em Jesus, todos vivem o tempo da realização. Bortolini (2006, p. 22) sugere que o menor do Reino pode ser o próprio Jesus, que se colocou a serviço de João e de todos os homens. Na lógica de poder/serviço de Jesus, o menor é o maior. Outros opinam que Jesus se referia aos apóstolos, como sendo esses “menores maiores” que João. Neotti (2019, p. 25) afirma que, elogiando João Batista, Jesus elogia a todos que creem no Evangelho e vivem segundo seus princípios. Dessa forma, entendemos que o Reino dos Céus acontece no homem.

No versículo 6, Jesus afirma: “Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião de queda!”, indicando que é feliz aquele que não se escandaliza diante da maneira como Ele se apresentou como o Messias. João deveria notar que o grande sinal da manifestação do Messias era o amor pela vida e o cuidado pela salvação do próximo. No lugar do temível juízo devastador, o perdão e a amizade de Deus devem ser anunciados.

Em sua vida pública, Jesus enfrentou muita incompreensão. O discernimento que ele nos pede é o de que não nos escandalizemos com suas ações e com os destinatários de sua obra. O Reino dos Céus é o lugar onde todos têm dignidade, não é um império opressor, que privilegia uma elite soberba às custas da miséria da grande maioria. Quem entende, acolhe e imita Jesus, é feliz, ou seja, bem-aventurado. Ao contrário, aquele que se escandaliza com a prática de Jesus não consegue ser feliz, vive em busca de ilusões, não é bem-aventurado.

São Gregório Magno traduz as palavras de Jesus nos seguintes termos: “Em verdade, eu faço coisas maravilhosas, mas não me recuso a sofrer as mais abjetas. Uma vez que, morrendo, eu te sigo, os homens que veneram meus milagres devem cuidar para não me desprezar em minha morte[2]”.


Reflexão

1) Hoje, muitos se escandalizam com as palavras e atitudes de Jesus, pois querem uma justiça pautada no pensamento humano. Teresinha de Jesus dizia que, se Deus é justo, tanto mais é Misericordioso, pois, sendo justo, não julgará só o crime cometido em si, mas as fraquezas inerentes à natureza humana que favoreceram sua consumação. Deus vê o homem todo. O Deus revelado em Jesus Cristo não pode ser medido pelos nossos sentimentos. Esse Deus lhe escandaliza? O que você entende por juízo e misericórdia?

2) Neotti (2019, p. 26) afirma que todo aquele que melhorar a sorte do homem na terra construirá o Reino dos Céus. A partir disso, questiona: como falar do Reino dos Céus, em um país autodeclarado de maioria cristã, enquanto tantos vivem na miséria, onde a maioria da população vive com fome de pão, de paz e de dignidade?

3) A pergunta de João pode ser traduzida em nossas vidas: eu creio verdadeiramente que Jesus é o Messias em quem eu devo crer? Eu o aceito como meu salvador?

4) Paredes (2011, p. 15) afirma que na esperança também é necessário o discernimento, pois podemos nos enganar na espera. João, ao perceber que suas expectativas não coincidiam com a realidade da atuação de Jesus, se coloca como aquele que está aberto a purificar seus anseios e a acolher a novidade do evangelho… E você, como lida com as suas frustrações? Tudo tem que ser do seu jeito, inclusive Deus?


Notas

[1] In Lucam, 7.

[2] São Gregório Magno, Homiliae in Evangelia, 6,5.


Referências

AQUINO, Santo Tomás de. Catena Aurea: exposição contínua sobre os evangelhos: Vol. 1: Evangelho de São Mateus. Campinas, SP: Ecclesiae, 2018.

ARMELINI, Fernando. Celebrando a Palavra: Ano A; [tradução de Comercindo B. Dalla Costa]. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2011.

A Bíblia: Novo Testamento. – São Paulo: Paulinas, 2015.

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

Bíblia de Navarra: Santos Evangelhos. 1 ed. São Paulo: Quadrante Editora, 2022.

Bíblia do Peregrino. Com anotações de Luís Alonso Schokel. São Paulo: Paulus, 2000.

BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos: Anos A, B, C, Festas e Solenidades. São Paulo: Paulus, 2006.

CANTALAMESSA, Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall’Alba]. – São Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.

CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. Tradução de Walter Lisboa. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2021. Coleção Grande Comentário Bíblico.

HAHN, Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Denis. O evangelho de São Mateus – Cadernos de estudo bíblico; [tradução de Thomaz Perroni] – Campinas, SP: Ecclesiae, 2014.

Missal Dominical: Missal da assembleia cristã. São Paulo: Paulus, 1995.

NEOTTI, Clarêncio. Ministério da Palavra – Ano A: comentário aos evangelhos dominicais e festivos – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.

PAPA BENTO XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo/Bento XVI: o ano litúrgico pregado por Bento XVI, tomo I: Ano A. 1a edição; tradução oficial da Santa Sé revisada. São Paulo: Molokai, 2017.

PAREDES, José Cristo Rey García. A Liturgia da Palavra comentada: Anos A, B e C. Tradução de José Joaquim Sobral. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2011.

STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo: Paulus, 1991.

TABORDA, Francisco; KONINGS, Johan. Celebrar o dia do Senhor: subsídios litúrgicos: anos A, B, C. São Paulo: Paulus, 2020.

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