Os pastores de Belém, o povo do Messias (Lc 2,1-14)
Na liturgia, encontramos este evangelho na Santa Missa do Natal do Senhor (Missa da noite)
Contexto
O início de Lucas (Lc 1-2) é conhecido como o Evangelho da infância de Jesus, e surgiu da necessidade da comunidade lucana reler os acontecimentos da vida de Jesus à luz do mistério Pascal (paixão, morte e ressurreição). Trata-se de uma leitura teológica dos fatos, para além do relato histórico. Alguns estudiosos sugerem que a Virgem Maria foi uma das fontes diretas ou indiretas de Lucas, tendo em vista a particularidade dos fatos narrados.
A Igreja comemora, no dia 25 de março, a anunciação do anjo a Maria, ou seja, o início de sua gravidez. Nove meses depois, em 25 de dezembro, celebra-se o nascimento de Jesus. Porém, cronologicamente, não se sabe a data exata do nascimento de Jesus, sua comemoração em 25 de dezembro vem da tradição litúrgica da Igreja.
A simbologia relacionada à duração do dia no hemisfério norte é muito significativa. Lá, o solstício de inverno ocorre anualmente por volta dos dias 21 e 22 de dezembro, marcando a noite mais longa do ano e dando a impressão de que a escuridão está vencendo a luz. Na Roma antiga, a festa do Sol Invicto era celebrada em 25 de dezembro, simbolizando a vitória da luz sobre as trevas, como uma espécie de início da luta (já vitoriosa) do dia contra a noite. Essa celebração exaltava o sol como fonte de vida e esperança, além de representar a renovação da natureza. Posteriormente, a Igreja assimilou essa comemoração e a associou ao Natal, uma vez que esse simbolismo está ligado ao mistério de Cristo, expresso no movimento litúrgico. Do nascimento de Jesus até sua ressurreição, há um gradativo aumento de luz, ou seja, de compreensão dos mistérios da encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus. Em sua missão, Jesus não apenas renovou, mas restaurou a natureza humana e toda a criação. A Missa da Noite de Natal, nos lembra que antes do nascimento de Cristo o mundo estava na escuridão e que Jesus é a luz que ilumina nossas vidas e toda a história. Em Isaías 9,1, é afirmado: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz”, indicando a vinda do Messias. Na oração das Laudes, a Igreja canta diariamente que “Deus fez brilhar sobre nós o Sol nascente, que veio para iluminar a quantos jazem entre as trevas” (Benedictus – cf. Lc 1,68-79).
É possível traçar um paralelo da passagem de hoje com a narração anterior em Lc 1,57-66, que trata do nascimento de João Batista. Enquanto João nasceu no conforto de sua casa, recebendo a visita de amigos e parentes, Jesus nasceu durante uma viagem, em um abrigo pobre e improvisado, recebendo a visita de pastores marginalizados. O edito de César Augusto serviu para que a Sagrada Família viajasse de Nazaré para Belém. Séculos antes, Malaquias havia profetizado que o Messias nasceria em Belém, como Davi. Com isso, aprendemos que Deus se utiliza dos acontecimentos de nossa história para realizar os seus desígnios. Para Lucas, o nascimento de Jesus em Belém não é circunstancial, mas um ato da vontade divina para o cumprimento das Escrituras.
Comentário
“Aconteceu que naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.” (vv. 1-5)
Ao falar de “toda a terra” ou “todo o mundo habitado” (oikouménē), Lucas se refere à extensão dos domínios do império romano (cf. At 11,28; 24,5). O recenseamento geral tinha finalidade militar e econômica: recrutar homens para o exército e assegurar o pagamento das taxas e tributos. Cada homem com sua família deveria se deslocar para o seu lugar de nascimento. Assim, José saiu da Galileia (onde morava) para participar do recenseamento em Belém (onde nasceu). A informação sobre Quirino é imprecisa, pois ele foi governador da Síria a partir do ano 6 d.C., quando fez um recenseamento local para transformar a Judeia em uma província romana da Síria. Contudo, alguns estudiosos afirmam que, na ocasião do nascimento de Jesus, a Judeia já teria sido vinculada à Síria. Ademais, hoje se sabe que houve um erro nos cálculos do monge Dionísio, que foi o responsável por essa investigação histórica. Tem-se como provável data do nascimento de Jesus os anos de 7 a 4 a.C.
César Augusto, cujo nome de nascimento era Caio Otávio (ou Otaviano), foi o fundador do Império Romano e seu primeiro imperador. Em 27 a.C., ele recebeu do Senado romano o título de Augustus (“magnífico”, “sagrado”), pondo fim à República Romana. Ele era sobrinho-neto e herdeiro do testamento de Júlio César, o precursor do sistema imperial. Assim, adotando o nome “César”, Caio Otávio fez o termo ser associado ao título de “Imperador”. Todos deviam honrá-lo como “divino César Augusto, filho de Deus, imperador de mar e terra, benfeitor e salvador do mundo”. Ele é conhecido por estabelecer a chamada Pax Romana (Paz Romana) em todo o Império. Contudo, essa pax era uma paz para ele e para os membros da aristocracia romana (cerca de 2% da população), que eram os beneficiários da manutenção do sistema imperial. Imagine o que pensavam os povos subjugados pelo Império, os pobres, os escravos… Será que esse período histórico teria o mesmo título, se fosse narrado por essas pessoas?
O evangelista escreve sobre o nascimento de Jesus como uma resistência à opressão de Roma e indica que o verdadeiro Filho de Deus e salvador do mundo é Jesus de Nazaré. A paz de Jesus não é o silêncio oriundo do medo, da pax que os romanos se gabavam de promover, mas a alegria da reconciliação com Deus. A salvação não vem de Roma (o centro do poder), mas de Belém (uma aldeia marginal de Jerusalém). O Reino de Jesus, como vemos em João 18,36, não é como o Império Romano, não pertence ao “mundo” da dominação pela força. O Reino de Deus não é “deste mundo”, ele cresce no coração dos homens e mulheres de boa vontade, gerando relações de fraternidade, sem opressão nem imposição.
Jesus foi concebido em Nazaré da Galileia, mas, por conta do recenseamento, nasceu em Belém, na Judeia, na mesma cidade onde nasceu o rei Davi. O texto de hoje situa o episódio no tempo e no espaço, fornecendo informações históricas e geográficas. Com isso, Lucas quer afirmar o fundo histórico do fato e descartar uma interpretação que negasse sua veracidade. Ele começa identificando César Augusto como o Imperador da época, portanto situa a história entre os anos de 27 a.C. e 14 d.C. Em seguida, indica o local do nascimento de Jesus, que foi em Belém da Judeia, uma aldeia a 90 km ao sul de Nazaré, cumprindo a profecia de Malaquias 5,1. Depois, Lucas indica as condições materiais de pobreza do nascimento de Jesus: não tem lugar para ficar e é posto numa manjedoura. Orígenes afirma que o fato de Jesus ter sido “inscrito” juntamente com todos os homens no recenseamento significa, espiritualmente, a sua solidariedade com o homem. Jesus “se junta” à humanidade e se torna participante dela, assumindo tal natureza.
“Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria.” (vv. 6-7)
A narração de que Maria está grávida e em viagem (do Norte ao Sul da Terra Santa) lembra a grande peregrinação anunciada por Jeremias em 31,8. E ao dizer que o tempo de Maria se cumpriu, que os dias se completaram, Lucas nos faz recordar o mesmo fato ocorrido na vida da matriarca Rebeca, em Gênesis 25,24. Maria e José são pegos de surpresa durante a viagem. Por ser de Belém, certamente José tinha parentes na aldeia e deve ter buscado abrigo na casa de algum deles ou de algum amigo. Mas como o recenseamento era geral, o lugar já devia estar lotado, outros parentes devem ter chegado primeiro e ocupado todos os lugares. A Bíblia de Navarra (2022, p. 495) explica que a palavra grega da qual se traduziu “hospedaria” é katályma. Ela designa um quarto que havia nas casas e que podia servir de sala ou quarto de hóspedes; o mesmo termo aparece em mais duas passagens do Novo Testamento, indicando a sala onde Jesus celebrou a Última Ceia (cf. Lc 22,1; Mc 14,14). A tradição da gruta remonta a Justino, no séc. II.
Maria deu à luz seu filho primogênito e em seguida o envolveu com faixas. Precisamos destacar três dados importantes dessas informações. Primeiro, a afirmação de que Jesus é o filho primogênito não tem como consequência lógica afirmar que Maria teve outros filhos biológicos depois de Jesus, mas apenas que não teve outros filhos antes dele. Na cultura judaica, o termo primogênito refere-se a qualquer primeiro filho do sexo masculino, tendo ou não irmãos. Ele foi o primeiro e, pelos outros dados bíblicos e da Tradição, o único. Em segundo lugar, Lucas demonstra a situação de desamparo e pobreza da Sagrada Família, pois a própria Virgem teve que envolver Jesus com faixas, indicando que não havia quem a ajudasse com o parto, além do fato de não ter usado um tecido mais nobre para cobrir o menino. Por último, essa mesma informação de que Jesus foi envolto em faixas nos lembra o dado fornecido por Lucas 23,50-54 sobre o sepultamento de Jesus, em que José de Arimateia envolveu o corpo de Jesus em um lençol, hoje conhecido como o santo sudário, para o colocar no sepulcro.
Maria colocou o recém-nascido numa manjedoura, que foi usada como um berço improvisado. A palavra manjedoura vem de manducare (latim), mangiare (italiano) e manjar (português), indicando a ação de comer, ingerir alimento. Dessa forma, a manjedoura era o local onde os animais se alimentavam. Jesus foi colocado no lugar onde se colocavam alimentos, simbolizando que ele mesmo se faria nosso alimento. Em Êxodo 16,6-12 lemos a promessa de Deus ao povo no deserto, de que lhes daria carne e pão (o maná, alimento descido do céu). O livro da Sabedoria (16,20) se refere ao maná como o alimento dos anjos, o pão dos anjos. Importante é notar que a palavra “Belém” significa “casa do pão”. Como já vimos, Jesus nasceu em Belém, na “casa do pão”. Ele disse em João 6,51-55 que sua carne é verdadeira comida e que seu sangue é verdadeira bebida; e também disse que é o Pão vivo que desceu do céu. Jesus é o verdadeiro maná, sua carne e sangue são o pão da Eucaristia, instituída na Última Ceia. A narração do nascimento de Jesus está intrinsecamente ligada ao seu mistério pascal. Ao nascer, o corpo de Jesus já nos é oferecido como alimento. São Cirilo afirma que Jesus, ao encarnar-se, deparou-se com os homens em estado bestial, como verdadeiros animais e que, por isso, foi posto na manjedoura. Mas, no lugar do feno, ele se tornou para nós o pão dos anjos descido do céu, para mudar nossa condição animalesca para a de filhos amados de Deus, pela comunhão com o seu Corpo e Sangue.
“Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura’. E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados’.” (vv. 8-14)
Na antiga Roma, quando se anunciava o nascimento de reis ou imperadores, bem como outras notícias a respeito deles, como a sua entronização, dizia-se que se proclamava um Evangelho (eu-aggelion), ou seja, uma boa notícia para os romanos. A notícia era dada, em primeiro lugar, aos nobres do povo. A fórmula geralmente utilizada para os nascimentos era “... hoje nasceu para vós um Salvador, o Senhor (Kyrios)...” Esses fatos eram chamados de epifanias, ou seja, manifestações divinas. Quando o rei ou imperador saía em visita aos seus súditos, nos mais diversos lugares de seu reino ou império, chamava-se essa espera pela visita, bem como o período da visita propriamente dita, de Adventum. Ou seja, Advento significa vinda ou chegada. Essas informações iluminam um pouco mais a nossa compreensão a respeito das intenções do evangelista Lucas: na boca do Anjo está a proclamação do nascimento de um rei, que é o Salvador. Jesus operou a salvação em seu mistério pascal. Aqui Lucas mais uma vez faz a ponte entre o nascimento e a morte e ressurreição de Jesus. O Anjo anunciou o nascimento e o futuro daquele rei, verdadeiro Deus que desceu de seu trono celeste para assumir a condição humana, e assim visitar o seu povo. É por isso que a Igreja chama o início do Ano Litúrgico de Advento.
A glória de Deus é uma manifestação visível de sua presença, do seu mistério (cf. Ex 40,35; Nm 9,15-17). A expressão shekinah não está presente na Bíblia, mas expressa o mesmo conceito e, por isso, é muitas vezes utilizada para indicar a gloriosa manifestação de Deus. Lucas utiliza as mesmas imagens de Isaías 8,23-9,6, em que treva/sombra/luz, glória/poder e alegria/presença/paz formam o contexto do anúncio profético: “... O povo que andava nas trevas viu uma grande luz… um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe da Paz...”. A shekinah é a ação de Deus na história, é sua glória que visa realizar o shalom (a plenitude dos bens e da paz) na vida dos seus filhos e filhas.
O “hoje” é o Kairós, o tempo da graça de Deus, o início dos últimos tempos. O anjo fez o anúncio aos pastores resumindo os mistérios da encarnação e redenção: Jesus é Salvador, Cristo e Senhor. No Antigo Testamento, a palavra salvador era utilizada especialmente para Deus (cf. 1Sm 10,19; Is 45,15.21; Sb 4,30). No Novo Testamento, essa mesma expressão é usada para Jesus, indicando, dessa forma, sua condição divina (cf. Lc 1,47; At 5,31; 13,23). As imagens de glória no céu e paz aos homens recordam as palavras do Salmo 28 (29). Ainda no Antigo Testamento, Isaías nos ajuda a compreender a noção de Boa Notícia. Em Isaías 40,9, ele a define como o anúncio da chegada de Deus: “Eis aqui o vosso Deus!”; em Isaías 52,7, apresenta o reinado de Deus como paz, alegria e salvação: “Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, boas novas e a salvação, do que diz a Sião: ‘O teu Deus reina’.”; e, por fim, em Isaías 61,1-2, aponta os beneficiários prioritários da ação salvadora de Deus: os pobres, os quebrantados de coração, os presos, os enlutados…
Em Lucas temos a anunciação do anjo a Maria (cf. Lc 2,26-38). Em Mateus, o anúncio do anjo é a José (cf. Mt 1,18-21). Agora, também em Lucas, o Anjo do Senhor (mal’ak Yhwh) vai anunciar o nascimento de Jesus aos pastores dos arredores de Belém. O anúncio feito é uma grande alegria, uma boa notícia, ou seja, o anjo também é evangelista. O envio de um mensageiro celeste se fez necessário tendo em vista a fragilidade do menino Jesus e as condições nas quais ele se encontrava. O estado de Jesus, humanamente falando, não refletia em nada a glória, a majestade e o poder divinos. Assim, no envio do anjo e de uma multidão do exército celeste (cf. 1Rs 22,19; Ne 9,6; Dn 7,10), Deus mostra o seu poder; em sua situação pobre e abandonada, Deus mostra a sua humildade; e, na escolha dos primeiros destinatários de sua mensagem, Deus mostra a sua predileção pelos menos favorecidos da sociedade. Em Belém, o silêncio da noite foi rompido pelo canto dos anjos e, a escuridão, foi iluminada pela luz de Cristo (cf. Sb 18,14-15; Jo 1,1-18).
Os pastores eram uma classe excluída, considerada impura pelo judaísmo. Eram pobres, sem condições de pagar pelos sacrifícios rituais de purificação. Por isso, não podiam entrar no Templo para rezar. Os líderes religiosos os consideravam desonestos e ladrões, pois muitas vezes eram acusados de pequenos delitos. Dizia-se que eles dificilmente se salvariam. Não eram aceitos como testemunhas em um tribunal, pois não eram “dignos de confiança”. Contudo, eles são o povo do Messias, os escolhidos para receber, em primeira mão, o anúncio do nascimento de Jesus.
Em seu ministério, Jesus continuou ao lado dessas pessoas. Ele adaptou sua mensagem a uma linguagem simples, ao alcance dos humildes. Suas parábolas tomaram as figuras do cotidiano do povo. Ele defendeu o “povão” contra os erros e excessos da classe religiosa dirigente. Toda a vida e ministério de Jesus foram marcados por dois grupos: os pobres, que aceitaram humildemente a mensagem da salvação e, do outro lado, os poderosos, que, incomodados pelas obras e palavras de Jesus, o discriminaram a ponto de matá-lo para silenciá-lo, para não perderem seus privilégios. Triste ilusão que ainda hoje perdura em algumas comunidades cristãs, onde pequenos grupos manipulam as massas de pobres e humildes, roubando descaradamente seus poucos recursos. E quando se levanta alguém para lhes dar voz e defendê-los, logo é taxado de comunista. O capitalismo religioso, fomentado por alguns mercenários influencers, youtubers e tutti quanti, visa o ganho e a promoção pessoal, às custas de polêmicas estéreis. Precisamos voltar ao Evangelho! Como diz o Papa Francisco: “A bandeira dos pobres é cristã. A pobreza está no centro do Evangelho. Os pobres estão no centro do Evangelho.”
Passeando pelo Antigo Testamento, podemos ver o carinho especial de Deus pelos pastores: Abel (Gn 4,2-4), Jacó (Gn 31,3-13), José do Egito (Gn 37,2-9), Moisés (Ex 3,1-6), Davi (1Sm 16,11-13) e Amós (Am 1,1). No Novo Testamento vemos que, frente ao anúncio do anjo, em nenhum momento os pastores questionaram, eles apenas se colocaram a caminho. Imagine os estudiosos e sábios da época recebendo essa mesma mensagem, eles certamente objetariam: “Como assim? O Cristo Senhor e Salvador está repousando em uma estalagem? Seu berço é uma manjedoura? O Messias não será um rei? Ele não é herdeiro do grande rei Davi? Um rei não nasce em ‘berço de ouro’? E Ele está envolto em faixas, em sua corte não há linho fino?” e por aí vai… Será que hoje seria diferente? Lembremos que os reis magos também visitaram Jesus, mas a eles não houve anúncio do anjo, o chamado deles foi diferente. Veremos isso em outra oportunidade, quando estudarmos os textos do evangelista Mateus.
Por fim, sabemos que o Natal é a época das luzes, das festas e confraternizações. Afinal, Jesus nasceu! Geralmente é quando visitamos amigos e parentes que só vemos nessa época do ano. É o período em que muitos se animam para participar de uma missa, por exemplo. Mas será que paramos para pensar em todos aqueles que nem mesmo se sentem dignos de entrar em uma Igreja, com receio dos olhares e comentários sobre si? Lucas dá o tom das festas natalinas, convidando os cristãos a não se esquecerem do Jesus que nasceu escondido e desamparado em Belém, na periferia da Judeia. Lucas não quer jogar água fria em nossa alegria, mas aponta para uma atitude de simplicidade e sobriedade. Se queremos ser o povo do Messias, precisamos ter entre nós os seus convidados. Como os pastores, será que lembramos de visitar aqueles que são os esquecidos do mundo e estão longe dos holofotes? O Anjo não precisa aparecer para nós, pois temos o testemunho dos Evangelhos. Se somos todos irmãos, como é que ainda hoje muitos não encontram abrigo “entre os seus”? Certo é que não podemos mudar o mundo sozinhos, mas qualquer gesto de caridade, qualquer palavra de carinho ou ajuda material, um sorriso, um tempo dedicado à escuta, já são grandes presentes para o menino Jesus.
Reflexão
1) Na escala de valores do mundo, vemos que o mais importante é ter riqueza, poder, fama… Nos Evangelhos, vemos que Jesus nasceu pobre, fraco e escondido, invertendo essa lógica. Jesus foi a única pessoa do mundo que pôde escolher em que família queria nascer, e escolheu José e Maria. Você certamente não escolheu sua família nem sua condição social, mas como andam suas outras escolhas na vida? O que pauta suas ações, o Evangelho ou a lógica do mundo?
2) Vimos que a forma que Lucas encontrou para se opor ao Império Romano foi proclamar a verdade a respeito do verdadeiro Deus e rei de Israel, desmascarando a farsa da pax romana. Jesus veio como um rei sem o poder político de César, sem palácio, coroa e nem exército. No Getsêmani, quando Pedro feriu a orelha de Malco, Jesus o repreendeu e o mandou guardar a espada. Hoje é muito comum, até mesmo dentro da Igreja, vermos pessoas que pensam poder vencer o mal usando as mesmas armas dos maus. Fazer guerra para garantir a paz, clamar por ditadura para evitar o totalitarismo, imaginando que a violência só será vencida se for realizada uma violência ainda maior. É possível conciliar essa mentalidade com o Evangelho? Se Deus nos deu as armas da luz, do bem, da paz, por que rejeitá-las para confiar na lógica da força e da opressão? Você acha que Deus nos deu as armas erradas?
3) A mesma luz de Cristo que iluminou a noite de Belém ilumina hoje nossas trevas e a escuridão do mundo. Basta um raio de luz para que as trevas comecem sua derrocada. Basta uma palavra de Cristo para que sejamos salvos, como afirmamos na Santa Missa (cf. Mt 8,8). O Salmo 118(119),105 afirma que a palavra de Deus é “lâmpada para os pés e luz para o caminho”. A luz de Cristo para nós é sua Palavra, vivida e celebrada na liturgia. Como você tem se preparado para bem viver os sacramentos? Você tem deixado a luz de Cristo expulsar as trevas dos vícios em sua vida? Você crê ser possível transformar a sociedade por meio da conversão pessoal, pela prática das virtudes para com o próximo?
4) A história da humanidade tem um novo começo a partir de uma criança indefesa e sem-teto, identificada com os pobres deste nosso mundo desigual. Quem poderia prever que Deus se submeteria a tal condição? Em alguns momentos, mesmo tendo razão, precisamos calar em nome da paz. Em outros momentos, precisamos colocar a boca no trombone para denunciar o mal no mundo. Jesus teve essas duas atitudes. Ele foi o manso cordeiro levado ao matadouro e, ao ser insultado, rezava por seus algozes; porém, o mesmo Jesus fez um chicote e expulsou os vendedores gananciosos e desonestos do Templo. Com isso, Jesus nos ensina que é preciso ter discernimento diante das situações da vida, a fim de agir conforme a vontade de Deus. Você tem praticado a paciência, quando Deus lhe envia situações propícias para isso? Você é subserviente com os poderosos e se cala diante das injustiças? Como saber agir como Jesus, se lemos e meditamos tão pouco a Palavra de Deus?
Referências
A Bíblia: Novo Testamento. - São Paulo: Paulinas, 2015.
AQUINO, Santo Tomás de. Catena Aurea: exposição contínua sobre os evangelhos: Vol. 3: Evangelho de São Lucas. Campinas, SP: Ecclesiae, 2020.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia de Navarra: Santos Evangelhos. 1 ed. São Paulo: Quadrante Editora, 2022.
Bíblia do Peregrino. Com anotações de Luís Alonso Schokel. São Paulo: Paulus, 2000.
CANTALAMESSA, Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall’Alba]. – São Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.
FRIGERIO, Tea. Curso Popular de Bíblia: As Comunidades: dar continuidade ao projeto de Jesus. São Leopoldo: 2002, CEBI.
GIANSOLDATI, Franca. Reportagem publicada no jornal Il Messaggero e republicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Tradução de Moisés Sbardelotto. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/170-noticias-2014/532796-o-comunismo-nos-roubou-a-bandeira-entrevista-com-o-papa-francisco>. Acesso em: 04.11.2022.
HAHN, Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Denis. O evangelho de São Lucas – Cadernos de estudo bíblico; tradução de Alessandra Lass – Campinas, SP: Ecclesiae, 2015.
NEOTTI, Clarêncio. Ministério da Palavra - Ano A: comentário aos evangelhos dominicais e festivos – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.
Missal Dominical: Missal da assembleia cristã. São Paulo: Paulus, 1995.
ROSSI, Alexandre. Jesus, sua vida e seu projeto. São Paulo: Paulus, 2022.
ROSSI, Alexandre; SIMÕES, Cristina. Os Evangelhos: Testemunhos de conversão e transformação. São Paulo: Paulus, 2021.
TABORDA, Francisco; KONINGS, Johan. Celebrar o dia do Senhor: subsídios litúrgicos: anos A, B, C. São Paulo: Paulus, 2020.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Lucas: os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulus, 1992.
0 comments