A Jesus, por Maria (Lc 2,16-21)

Por: - 01 de janeiro de 2023

 Imagem: Luís Henrique Alves Pinto (luishenriquealvescriar-te.blogspot.com)O evangelista fala de Maria a partir do Filho, colocando Jesus como o centro do episódio narrado. A maternidade de Maria só pode ser qualificada como "divina", porque Jesus é homem e Deus. Maria não é uma deusa, mas é a mulher escolhida para ser Mãe do homem que possui natureza divina. E o mais importante: essa escolha foi feita pelo próprio Deus!
Na liturgia, encontramos este evangelho na Solenidade da Santa Mãe de Deus, em 1º de janeiro.


Contexto

O Evangelho que estudaremos é a continuação do trecho lido na noite de Natal. É um texto breve, que nos convida a olhar com carinho para a Mãe de Deus, a começar o ano novo na companhia de Maria, com os olhos fixos em Jesus. A concepção e o parto virginal de Maria iniciaram um novo tempo, o kairós de Deus (tempo da graça). Essa tradição é uma herança das igrejas orientais, que prestavam homenagem a Maria logo após o Natal. Na liturgia romana, essa é a comemoração mariana mais antiga.

Maria é Mãe de Deus (Theotokos), nós cremos firmemente. O dogma da Maternidade Divina foi proclamado solenemente no Concílio de Éfeso, em 431: “Que seja excomungado quem não professar que o Emanuel é verdadeiro Deus e, portanto, que a Virgem Maria é verdadeira Mãe de Deus, pois deu à luz segundo a carne aquele que é o Verbo de Deus”. Podemos dizer que esta afirmação foi confirmada no Concílio de Calcedônia (451), onde se proclamou Jesus como perfeito em humanidade e em divindade, cuja união das duas naturezas é “sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”. A Igreja possui quatro dogmas marianos, sendo este o primeiro. Os outros três são sobre a Virgindade Perpétua (Concílio de Latrão, 649), a Imaculada Conceição (Bula Ineffabilis Deus, de Pio IX, em 8 de dezembro de 1854) e a Assunção de Maria (Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de Pio XII). A Maternidade Divina é considerada o título mariano fundamental, pois é a partir dele que temos os demais títulos com os quais se honra Maria.

São Paulo VI também quis honrar Maria com o título de Mãe da Igreja, em 1964, durante o Concílio Vaticano II. Toda mãe faz parte da família, dessa forma, Maria é Mãe e integrante da Igreja, do povo de Deus. Neotti (2019, p. 47) afirma que, sem Jesus, Maria seria mais uma das tantas Marias do mundo. Mas, sendo a Mãe do Filho de Deus, ela é a bendita entre todas as mulheres, a cheia de graça, com quem está o Senhor (cf. Lc 1,28.42). Por mais que a reflexão pareça recair sobre Maria, tudo diz respeito a Jesus. Todos os dogmas marianos são essencialmente cristológicos. Maria só pode ser chamada de a Mãe de Deus por causa do próprio Deus feito carne em Jesus, devido às duas naturezas (divina e humana) na pessoa do Filho.


Comentário

“Os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura. Tendo-o visto, contaram o que lhes fora dito sobre o menino. E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam. Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração. Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito. Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido.” (vv. 16-21)

Lucas diz que os pastores saíram às pressas, fazendo lembrar a mesma pressa de Maria para visitar sua prima Isabel (cf. 1,39) e a pressa que Jesus ordenou a Zaqueu (cf. Lc 19,5-6). É a pressa de quem recebeu a mensagem da salvação e sente a urgência de transmiti-la. Os pastores ouviram e agora veem. Na cena, observamos que havia outras pessoas além da Sagrada Família. Essas pessoas só compreenderam o que realmente aconteceu naquela estrebaria devido ao testemunho dos pastores. Depois de encontrarem o Messias e cumprirem sua missão de anunciar o que tinham ouvido da parte do anjo, os pastores voltaram para suas atividades, com um novo sentido de vida, dando glória a Deus.

Ao falar que Maria “guardava” os fatos e os “meditava cuidadosamente em seu coração”, Lucas talvez esteja se referindo a Maria como a fonte das informações básicas sobre o nascimento de Jesus. Maria é apresentada como uma verdadeira teóloga, com a habilidade de ler os acontecimentos da vida à luz da presença de Deus. No Antigo Testamento, temos alguns exemplos semelhantes em Gênesis 37,11 e Daniel 7,28. “Conservar no coração” tem o sentido de interpretar os fatos a partir da consciência da condução de Deus. Essa interpretação pode ser imediata, mas também pode aguardar o sentido do fato para um momento posterior. Maria, Jacó e Daniel nos ensinam a buscar a presença de Deus em todos os momentos de nossa vida, a discernir Sua presença, sobretudo nos momentos mais difíceis, quando parece que estamos desamparados.

O nosso breve texto encerra com a informação acerca da circuncisão de Jesus. A Lei previa três cerimônias vinculadas ao nascimento: circuncisão da criança no oitavo dia de vida (cf. Gn 17,10-14; Lv 12,3), a purificação da mãe (cf. Lv 12,4-8), a apresentação no Templo e, se fosse o caso, o resgate do filho primogênito (cf. Ex 13,2.12.15; 34,19-20). A Sagrada Família cumpriu todas as suas obrigações legais com fidelidade (cf. Lc 2,22-24.41). O rito da circuncisão consistia na operação do corte da carne do prepúcio, acompanhada da recitação de bênçãos e da imposição do nome. A tarefa de dar um nome à criança era atribuída ao pai. Ao narrar que o nome de Jesus foi dito por Deus através do anjo, Lucas e Mateus afirmam que Deus se mostrou como o verdadeiro Pai de Jesus.

A circuncisão remonta à Aliança de Deus com Abraão, era o seu sinal visível, colocado na parte do corpo masculino por onde passa a vida, a possibilidade da geração de novos filhos, para dizer que Deus abençoaria toda a descendência abraâmica desde a sua concepção. Antes, Deus havia feito uma Aliança com Noé e com toda a criação: não enviaria mais o dilúvio sobre a terra, estabelecendo o arco-íris como sinal visível de sua promessa (cf. Gn 9,12-17). Depois de Abraão, Deus fez Aliança com o povo liberto do Egito, celebrada por Moisés e simbolizada nas tábuas da Lei, que continham as Dez Palavras (ou Dez Mandamentos). A Aliança mosaica assumiu o rito da circuncisão em seu código de leis, como já vimos em Levítico 12,3.

Jesus nasceu sujeito à Lei, como diz São Paulo em Gálatas 4,4-7, por isso é circuncidado como as demais crianças do seu povo, sendo inserido no povo da Antiga Aliança (descendência de Abraão), mas assumiu a circuncisão para que esse rito fosse superado. Pois não é a Lei que salva, senão Jesus Cristo (cf. Is 12,2 em paralelo com Mt 1,21). Jeremias havia profetizado uma nova Aliança na qual Deus perdoaria os pecados da casa de Israel, cuja Lei seria inscrita nos corações (cf. Jr 31,31-34). Jesus trouxe a última e definitiva Aliança, que é superior a todas as anteriores, instituindo-a na Santa Ceia, selada em seu Corpo e Sangue, que celebramos na Eucaristia. O Concílio de Jerusalém, o primeiro da Igreja, ocorrido no ano de 49, declarou que não havia mais a necessidade da circuncisão, pois esta era apenas uma prefiguração do batismo, chamado pelo Catecismo de a “circuncisão de Cristo” (cf. At 15,1-21; CIC n. 527).

Cantalamessa (2017, p. 37-39) aponta o fato do evangelista falar de Maria a partir do Filho, colocando justamente Jesus como o ponto de referência, o centro do episódio narrado. A maternidade de Maria só pode ser qualificada como “divina” porque Jesus é homem e Deus. Maria não é uma deusa, mas é a mulher escolhida para ser Mãe do homem que possui natureza divina. E o mais importante: essa escolha foi feita pelo próprio Deus! Assim, a Igreja nos ensina qual é o justo lugar do culto mariano: sempre em perspectiva dos mistérios cristológicos, que prevalecem sobre tudo o mais. Na liturgia das Vésperas da igreja Bizantina, se reflete sobre cada sinal de reconhecimento das criaturas apresentadas a Deus: os anjos cantam; os céus fazem brilhar uma estrela; e nós oferecemos uma Mãe Virgem, a nossa mais bela, pura e santa criatura. Na Cruz, Jesus nos ofereceu o mesmo dom, como um último testamento antes de sua morte, dando-nos Maria como nossa Mãe: “Eis a tua mãe!” (cf. Jo 19,27). 


Reflexão

1) Os pastores seguiram o anúncio do anjo e imediatamente foram até Belém. Chegando lá, não encontraram nada de extraordinário, apenas uma família pobre com um recém-nascido em uma manjedoura. O extraordinário já havia sido experimentado na manifestação do anjo. Muitas vezes, para alimentar a nossa fé, buscamos o tempo todo sinais extraordinários (curas, milagres, prodígios…) e esquecemos da epifania cotidiana de Deus na Eucaristia. Que milagre maior poderia acontecer sobre a Terra, que contenha em si a encarnação, morte e ressurreição do Senhor? A verdadeira fé se alimenta da Eucaristia. A humildade do menino no presépio está sempre diante de nossos olhos na hóstia consagrada... Como está sua frequência à Ceia do Senhor? Você tem buscado o estado de graça, para poder comungar devidamente? Você dedica um pouco do seu tempo para adorar Jesus no Santíssimo Sacramento?

2) No dia 1º de janeiro também se comemora o dia mundial da paz, data criada por São Paulo VI em 1967. É muito significativo que neste dia a Igreja celebre a maternidade de Maria. Isaías 9,5 afirma que o menino nascido seria chamado de Príncipe da Paz. Miquéias 5,4 profetiza que o próprio menino será a paz, o que é confirmado pelo Apóstolo Paulo: “Ele é a nossa Paz!” (cf. Ef 2,14). Maria é Rainha da Paz porque seu Filho é o Príncipe da Paz. Celebrando Maria como a Mãe de Deus, peça que ela alcance o dom da Paz para sua vida, que ela lhe alcance a graça da presença de Jesus em sua caminhada, lhe ajudando a ser paz e a interceder pela paz na Igreja e no mundo inteiro.

3) Em seu ministério, Jesus nos deu tudo, inclusive a Si mesmo. Como vimos, Ele também nos deu Sua Mãe para que a honrássemos e amássemos como Ele mesmo fez. Você tem escrúpulos quanto ao amor que deve ter à Mãe de Jesus? Não precisa ter medo, Maria não quer nada para si, ela tudo direciona para o Filho. Lembre-se das palavras do anjo a José: “Não temas receber Maria...” (cf. Mt 1,20). Você acha que honrar Maria atrapalha sua fé em Jesus? Você sabe qual o justo lugar do culto mariano na Igreja? Que tal começar a meditar sobre os mistérios da vida de Jesus através da recitação do santo terço?


Referências

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

Bíblia de Navarra: Santos Evangelhos. 1 ed. São Paulo: Quadrante Editora, 2022.

Bíblia do Peregrino. Com anotações de Luís Alonso Schokel. São Paulo: Paulus, 2000.

BISINOTO, Pe. Eugênio. Os dogmas marianos. Disponível em: <https://www.a12.com/academia/catequese/os-dogmas-marianos>. Acesso em: 12.12.2022. 

CANTALAMESSA, Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall’Alba]. – São Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.

HAHN, Scott; MITCH, Curtis; WALTERS, Denis. O evangelho de São Lucas – Cadernos de estudo bíblico; tradução de Alessandra Lass – Campinas, SP: Ecclesiae, 2015.

Missal Dominical: Missal da assembleia cristã. São Paulo: Paulus, 1995.

NEOTTI, Clarêncio. Ministério da Palavra – Ano A: comentário aos evangelhos dominicais e festivos – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.

STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Lucas: os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulus, 1992.

TABORDA, Francisco; KONINGS, Johan. Celebrar o dia do Senhor: subsídios litúrgicos: anos A, B, C. São Paulo: Paulus, 2020.

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