Cumprir a justiça: solidarizar-se com os pobres e pecadores (Mt 3,13-17)
Na liturgia, encontramos este evangelho na Festa do Batismo do Senhor, celebrada no Domingo entre 9 e 13 de janeiro. Quando a solenidade da Epifania é celebrada no dia 7 ou 8 de janeiro, a festa é transferida para a segunda-feira seguinte.
Contexto
A Festa do Batismo do Senhor continua o tema da Epifania e encerra o ciclo natalino, que dá lugar ao primeiro período do Tempo Comum. Nessa nova epifania, Jesus é apresentado pelo Pai como o Filho muito amado, sobre quem desce o Espírito Santo. Esse episódio marca o início do ministério público de Jesus.
Os quatro evangelhos recordam o batismo de Jesus, mas cada evangelista narra esse episódio com características próprias, de acordo com sua finalidade teológica. Mateus e Marcos dizem explicitamente que Jesus foi batizado por João, Lucas faz apenas uma referência ao batismo de Jesus, sem citar o profeta, e João Evangelista narra a partir de um discurso de João Batista, em que o profeta afirma que batizava e que viu o Espírito Santo descer sobre Jesus, sem afirmar diretamente que o havia batizado. Seja por indicações diretas ou indiretas, sabemos pelos quatro Evangelhos que Jesus foi batizado por João. Compare: Mt 3,13-17, Mc 1,9-11, Lc 3,21-22 e Jo 1,31-34, atento às particularidades de cada relato. A seguir, veremos a narração feita por Mateus.
O texto faz parte daquilo que os estudiosos chamam de o primeiro livrinho de Mateus, que compreende os capítulos de 3-7. Esse bloco de capítulos é narrativo e seu tema é a chegada do Reino dos Céus. Podemos subdividir a perícope em três partes: v.13; vv. 14-15; vv. 16-17. Dessa forma, visualizamos que o versículo 15 está no centro do texto, indicando sua mensagem principal: “Devemos cumprir toda a justiça”. Essas são as primeiras palavras de Jesus em Mateus, que foi o único evangelista a registrar o diálogo entre Jesus e João. Com isso, temos a seguinte chave de leitura: Jesus é o mestre de justiça, aquele que vive com fidelidade a vontade do Pai.
Comentário
“Naquele tempo, Jesus veio da Galileia para o rio Jordão, a fim de se encontrar com João e ser batizado por ele.” (v. 13)
Após a epifania aos Magos, Jesus viveu uma vida simples e escondida em Nazaré. Com mais ou menos 30 anos de idade, ele foi da Galileia ao rio Jordão, para ser batizado por João e assumir publicamente a missão que recebeu do Pai. Um caminho sem volta que o levou à morte e ressurreição. As testemunhas dessa epifania são mais numerosas do que as da noite em Belém, pois muitos eram os que iam procurar João Batista (cf. Mt 3,5). Aqui, não foi a estrela quem indicou o Messias, mas a voz do Pai.
O batismo de João não é o mesmo batismo cristão. Jesus não precisou assumir seus pecados, pois não os tinha. Não foi purificado, pois o batismo de João não tinha essa característica (e nem Jesus precisava). Ele já era um com o Pai e o Espírito e, além disso, é Filho unigênito desde a eternidade. Porém, a cena do batismo de Jesus é uma prefiguração de como será o nosso batismo, pois precisamos ser purificados, receber o Espírito Santo e sermos adotados como filhos de Deus.
Toda a cena tem a finalidade de indicar quem é Jesus e qual a sua missão. A narração do batismo é feita com uma linguagem apocalíptica, revelando uma epifania trinitária: o Pai fala e, ao mesmo tempo, o Espírito Santo desce sobre o Filho. O fato de Jesus “ir até João” tem o sentido profundo do movimento de Deus que vai ao encontro dos pecadores, a ponto de assumir tal condição, para libertar-nos da escravidão do pecado (cf. Fl 2,6-8).
“Mas João protestou, dizendo: ‘Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?’ Jesus, porém, respondeu-lhe: ‘Por enquanto deixa como está, porque nós devemos cumprir toda a justiça!’ E João concordou.” (vv. 14-15)
Todos aqueles que procuravam João o faziam como sinal de arrependimento, de aceitação da própria condição pecadora. Ao contrário, Jesus o faz como sinal de submissão aos planos do Pai e de aceitação da missão redentora. Jesus não se deixou batizar para ser purificado, mas para purificar as águas que, no sacramento do batismo cristão, transmitem a graça do perdão dos pecados.
No contexto da Aliança, a palavra “Justiça” (Dikaiousine, do grego) significa fidelidade. Nesse sentido, a justiça de Deus consiste em que Ele cumpre fielmente tudo o que assumiu na Aliança com Israel. Da parte do povo, a justiça consistia em uma vida em conformidade com a Lei. Na Bíblia, a justiça também está relacionada com a prática da esmola. Em hebraico, “justiça” é TseDeK, de onde derivam TSaDik (justo) e TseDaKaH (esmola). Portanto, dar esmolas é dar ao pobre aquilo que lhe pertence, fazendo-lhe justiça. A obediência de Jesus ao Pai é o modelo a ser seguido. Ele aceitou a morte em vista da sua própria fidelidade. Jesus se submeteu ao batismo da mesma forma que se submeteu à Cruz. Hahn & Mitch (2014, p. 39) explicam que, no Novo Testamento, a justiça é dom de Deus transmitido no batismo e recebido pela fé, o que restaura as relações do homem com Deus.
Mesmo sendo batizado por João, Jesus fala no imperativo, ao que João assente, reconhecendo a autoridade do Messias. Porém, Jesus não exerce sua autoridade de forma despótica ou para humilhar João, mas tão somente para fazer a vontade de Deus, cumprindo a justiça.
“Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água. Então o céu se abriu e Jesus viu o Espírito de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre ele. E do céu veio uma voz que dizia: ‘Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado’.” (vv. 16-17)
Antes de João Batista, Israel ficou sem profeta por quase 400 anos. O último havia sido Malaquias. Parecia que o céu estava “fechado” e que Deus havia silenciado. Era como se o Espírito sobrevoasse o povo, mas não encontrasse morada em ninguém.
Em Gênesis 1,2 lemos que o Espírito de Deus pairava sobre as águas, como um prelúdio da criação. Em Mateus, subentende-se que o Espírito pairava sobre as águas do Jordão, prenunciando a nova criação iniciada por Jesus. Ao mesmo tempo, os “céus se abriram”, ou seja, o mundo transcendente se tornou acessível em Jesus. Na Bíblia, os Céus são a morada de Deus. Isaías (63,15-19) pede que Deus “abra os céus”, quebre o silêncio e venha em socorro do seu povo pecador. Jesus é a resposta de Deus a esses pedidos. O passivo “se abriram” ou “foram abertos” indica que essa ação foi realizada pelo próprio Deus. Esse detalhe lembra Ezequiel 1,1.
A pomba remonta ao episódio do dilúvio (Gn 6-9), em que os céus também pareciam fechados, devido à inimizade dos homens com Deus. No fim do dilúvio, ela aparece como sinal de que a paz havia sido restabelecida. Jesus é o portador da paz definitiva que Deus quer conceder aos homens, por isso a pomba desce sobre ele. A narração de que o Espírito desceu sobre Jesus encontra paralelos em outros personagens do Antigo Testamento: Gedeão (Jz 6,34), Sansão (Jz 15,14), Saul (1Sm 10,6) e o rei davídico (Is 11,1-6).
Neotti (2019, p. 56) explica a figura de linguagem que Mateus utiliza quando diz que o céu se abriu. Ela tem o mesmo sentido de quando afirmamos que uma porta se abriu, não querendo expressar que uma porta está literalmente aberta, mas que surgiu uma nova oportunidade, uma nova chance. Assim, Mateus nos diz que o céu aberto é a nova etapa da história da salvação em que se inicia o tempo do Messias, a nova Aliança.
A voz do Pai ecoa Isaías 42,1: “Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre ele o meu Espírito, ele trará o direito às nações.” Jesus é o servo de Deus. Mas, ao nomear Jesus como filho muito amado, Mateus faz referência à entronização dos reis de Judá, momento em que o rei era “adotado” como filho de Deus. Podemos entrever essa celebração no Salmo 2,7: “Publicarei o decreto de Iahweh: Ele me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei’.” Jesus é mais do que servo e mais do que rei, é Filho, amado com foi Isaac por Abraão (cf. Gn 22,2) e como o povo de Israel também o era pelo próprio Deus (cf. Ex 4,22-23).
Reflexão
1) A Igreja tem a missão de continuar na história o projeto de Jesus, vivendo com fidelidade os planos de Deus para um mundo novo. Como nós podemos contribuir para que a justiça de Deus se estabeleça sobre a terra? Você acha possível ser fiel a Jesus sem conhecer sua vida e suas palavras?
2) A fidelidade de Jesus ao Pai foi manifestada em cada uma de suas ações. Jesus trabalhou incansavelmente para nos deixar o modelo de vida cristã. Para viver a justiça proposta por Jesus, devemos ajudar os que estão caídos, feridos pelo pecado, ir ao encontro dos que sofrem e se colocar ao lado dos marginalizados. E não somente isso, cada uma dessas ações deve ser realizada de forma positiva, alimentando a esperança de que para Deus nada está perdido. Como é a sua abordagem religiosa? Você tem animado os outros a seguirem com esperança a caminhada cristã ou você é daqueles que faz o cristianismo parecer um peso insuportável? Como podemos ajudar nossas comunidades a não afundarem num pessimismo religioso?
3) Jesus fala a João: “Devemos cumprir toda a justiça.” (Mt 3,15). Note o plural “devemos”. Em seguida, Mateus diz que João consentiu. Como estender o “devemos” de Jesus a todos os tempos e lugares? Como fazer com que a vivência do Evangelho se torne um hábito em nossas vidas? Reze e peça ao Senhor a docilidade e a obediência que teve João ante o apelo de Jesus.
Referências
ARMELINI, Fernando. Celebrando a Palavra: Ano A; [tradução de Comercindo B. Dalla Costa]. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2011.
CANTALAMESSA, Raniero. O Verbo se faz carne; [tradução de Cornélio Dall’Alba]. – São Paulo: Editora Ave-Maria, 2012.
FAUS, Francisco. NATAL: reunião dos sorrisos (Novena de Natal). São Paulo: Quadrante, 2001.
NEOTTI, Clarêncio. Ministério da Palavra – Ano A: comentário aos evangelhos dominicais e festivos – Aparecida, SP: Editora Santuário, 2019.
PAPA BENTO XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo/Bento XVI: o ano litúrgico pregado por Bento XVI, tomo I: Ano A. 1a edição; tradução oficial da Santa Sé revisada. São Paulo: Molokai, 2017.
0 comments