Fé na Palavra: o testemunho da Mulher Samaritana (Jo 4,4-42)
Sem perceber, a Samaritana foi sutilmente saciada pela palavra de Jesus, não necessitando de nenhum sinal ou milagre para crer. Transbordante de água viva, a mulher mostrou ter-se tornado também uma fonte. Ela correu para anunciar a novidade aos seus conterrâneos e, por sua palavra-testemunho, voltou com a cidade após si. Na liturgia, encontramos este evangelho no 3º Domingo da Quaresma - Ano A.
Contexto
A passagem de Jesus pela Samaria é um texto exclusivo do quarto Evangelho. O motivo pode ser o fato da comunidade joanina ter sido composta, sobretudo, por judeus da Galileia, gregos e samaritanos convertidos. Chamaremos a recordação da ação direta de Jesus na Samaria de memórias samaritanas.
Após o cisma do reino de Israel em meados do ano 931 a.C., a tensão entre norte e sul perdurou até os tempos de Jesus. Os judeus eram os herdeiros do reino do Sul; já os samaritanos, do reino do Norte. A hostilidade era recíproca. Portanto, precisamos de uma visão histórica das raízes da inimizade entre esses povos para entendermos como Jesus os reconciliou. Como em toda a Sagrada Escritura, a geografia dos acontecimentos também é importante para a compreensão teológica dos fatos. Fizemos uma abordagem dos principais acontecimentos da região entorno e sobre o monte Garizin, nas tradições judaica e samaritana, no texto “Memórias samaritanas: a comunidade cristã é o lugar dos reconciliados (Jo 4,4-42)”. Recomendamos tal leitura para uma melhor compreensão desta postagem.
O antigo reino de Israel unificado sob Davi e Salomão representava a união dos herdeiros dos filhos de Jacó sob um único rei e uma mesma religião. Com o cisma, o Norte rompeu com a dinastia davídica e com o culto de Jerusalém. Profetas como Elias, Eliseu, Oseias e Amós, denunciaram o estado de idolatria vivido no Norte. Em João, veremos como a conversão da Samaria representou o cumprimento das profecias a esse respeito, sobretudo as de Oseias, e como a linguagem empregada pelo evangelista une o entendimento de Reino de Deus com Família de Deus, além de deslocar o culto exterior para o âmbito da relação Filho-Pai, em espírito e lealdade.
A perícope que estudaremos vai do verso 4 ao 42 do quarto capítulo do Evangelho segundo João. Trata-se de um texto de estilo narrativo, localizado após a primeira das três páscoas dos judeus narradas pelo evangelista, e entre os dois primeiros sinais de Jesus realizados em Caná da Galileia. Podemos afirmar que a perícope é a apresentação da pessoa de Jesus pelos olhos samaritanos, cuja recordação foi conservada e teologicamente amadurecida, resultando no que hoje temos em Jo 4,4-42. A ação direta de Jesus na Samaria precedeu a ação missionária da igreja nascente, narrada nos Atos dos Apóstolos. Destaca-se o papel da mulher samaritana, de cujo anúncio colhemos os frutos ainda hoje, pois os samaritanos foram as primícias da evangelização dos não judeus, ou seja, nesse episódio temos o precedente da nossa própria evangelização, além de um acento importante sobre o apostolado feminino, que nos abre um horizonte sobre o importante papel da mulher na ação missionária da Igreja. Importa-nos revisitar as memórias samaritanas para compreendermos os fundamentos da evangelização dos povos gentios e a superação de questões étnicas e culturais no acolhimento de novos filhos de Deus na Igreja.
Comentário
“Era preciso passar pela Samaria.” (v. 4)
Anúncios de Reconciliação: o Reino Messiânico como família de Deus
O profeta Ezequiel anunciou a reunião de Judá e Israel em um único reino, sob o comando de Davi, em torno de um novo santuário (cf. Ez 37,15-28. Para uma descrição minuciosa do templo futuro: Ez 40-48), firmados em uma aliança de paz (cf. Ez 34,23). O oráculo do profeta afirma que o santuário ficaria no meio do povo para sempre. O santuário móvel de Israel (Tabernáculo) era também chamado de Habitação (cf. Ex 26,1-14). Essa Habitação acompanhou os israelitas em sua peregrinação pelo deserto e era o sinal da presença de Deus no meio do povo, cuja manifestação era representada pela nuvem da glória de Deus, a Shekinah (cf. Ex 40,34-35). O prólogo do quarto Evangelho afirma que “o Verbo se fez carne e armou a sua tenda [habitou] entre nós” (cf. Jo 1,14), no que podemos ver traçado um plano teológico no qual o evangelista mostra como Jesus é esse novo Templo onde os homens têm acesso a Deus e que, no deserto desta vida, acompanha a Igreja até a consumação escatológica da história. Jesus é o descendente real de Davi, que, em missão de paz na Samaria, reconquistou esse povo para o Seu Reino.
Oséias também fala de reconciliação (cf. Os 2,2) e anuncia a conversão de Israel, ou seja, do reino do Norte (cf. Os 2,16-25). Oséias atuou no Norte por volta dos anos de 755 a 720 a.C., ele foi coetâneo de Amós, que também atuou no Norte, e de Miquéias e Isaías, que atuaram no reino do Sul. Schokel (2017, p. 2194) faz notar que a profecia, lida à luz de João 4,4-42, nos fornece as seguintes características tipológicas: A "mulher samaritana" é como a Samaria personificada de Os 2: infiel ao marido YHWH (Os 2,4.6), entregue aos ídolos amantes (2,7.9), pervertendo o culto (2,15), ameaçada de morrer de sede (2,5); mas cortejada a sós por YHWH (2,16), reconciliada (2,17-18.21), de modo que começa um ciclo agrário (2,23-24) e a fecundidade da mulher.
Ao introduzir o episódio, o evangelista afirma que “era preciso passar pela Samaria” (v. 4). Havia três caminhos mais comuns para se viajar da Galileia para Jerusalém: o mais curto era o que passava pela Samaria (120 km), por isso era o mais utilizado. O segundo era o percurso que descia até Jericó e seguia pelas margens do rio Jordão (140 km). E havia, também, um mais longo, pela rota comercial via maris, pelo litoral (150 km). Apesar do caminho da Samaria ser o mais utilizado pelos galileus em suas viagens a Jerusalém (e evitado pelos fariseus e doutores da lei), entendemos a afirmação do evangelista como teológica: Jesus precisava passar pela Samaria atendendo ao projeto de Deus para o povo samaritano. É possível que João esteja afirmando que, no mesmo local onde houve o cisma do reino de Davi/Salomão, a visita de Jesus significaria a reunificação do reino, sob nova perspectiva, com a ampliação das fronteiras, onde não só os herdeiros do reino do Norte seriam admitidos no reino messiânico de Jesus, mas todos os povos da terra, que têm o seu lugar na Igreja. Apesar de João citar o AT explicitamente apenas treze vezes, as alusões a outras passagens e, sobretudo, a temas teológicos, são numerosas. João emprega livremente o AT de acordo com sua intenção teológica. Sobre a universalidade do reino do Messias em João, temos o simbolismo da divisão das roupas de Jesus em quatro partes pelos soldados romanos (pagãos), indicando os quatro pontos cardeais ou quatro cantos da Terra (cf. Jo 19,23).
Ao procurarmos em João o termo grego basileia, notamos que a ideia de “reino de Deus” é praticamente escassa. Parece-nos que João identifica “reino de Deus” com “família de Deus”, rejeitando a ideia de um Messias-dominador que restauraria as instituições que legitimavam a opressão exercida pelo “Templo” sobre o povo. Em Jo 1,49, Natanael professa sua fé em Jesus, unindo sua filiação divina ao seu reinado: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel”. Diante de Pilatos, Jesus confessa ser rei, mas não em sentido político, pois Seu reino não é do mundo de Pilatos (“deste mundo” – cf. Jo 18,36, também entendido: “como este Império Romano”). Brown (1975, pp. 153-154) conclui que Jesus é rei no sentido religioso, que veio a este mundo como “regente do Pai” . O Messias é apresentado como o Rei-Filho de Deus que veio para servir e como o Esposo do novo Israel, que comunica o Espírito e, pelo mesmo Espírito, “cria” novos filhos para Deus. Daí a insistência no tema da paternidade divina e da esponsalidade no quarto Evangelho.
Vancells (1989, p. 108) aponta que João utiliza o vocábulo pater (Pai) 120 vezes para falar de Deus, mais do que utiliza a palavra théos (Deus), que soma 75 ocorrências. O quarto Evangelho é o único livro do NT onde se encontra essa superioridade. A promessa da família numerosa de Abraão passa então a ser entendida de forma mais ampla, superando os limites da descendência biológica. Instituiu-se o critério de imitação da fé do patriarca como forma de agregação ao povo escolhido. Portanto, a compreensão de pertença ao povo santo não é mais a raça, mas a atitude de aceitação do Messias como Filho de Deus e Salvador do Mundo. Em João, “a concepção de unidade como filhos do Pai substitui a expressão reino de Deus, usada somente em 3,3.5.” (BARRETO & MATEOS, 1989, p. 274)
Uma vez que os samaritanos só tinham por Sagrada Escritura o Pentateuco, precisamos entender sua espera messiânica a partir da Torá. O principal texto que fundamenta o perfil messiânico samaritano é Dt 18,15-18, no qual Deus promete enviar um profeta como Moisés. É desse texto que procede a expressão Taheb, que significa “aquele que retorna” ou “aquele que restabelece”. O Taheb também era visto como um novo Moisés. Este subiu ao Monte Sinai para receber as tábuas da Lei, que continham as Dez Palavras ou Dez Mandamentos, expressão da vontade de Deus para o povo. Jesus, por sua vez, desceu de junto do Pai para revelar em sua vida e ministério a vontade de Deus para todos os homens.
Em Gn 49,8-12 lemos a bênção de Jacó a seu filho Judá, uma bênção profética na qual podemos antever a descendência real que será o sinal distintivo da tribo de Judá, em cujos descendentes temos Davi, Salomão, Josias, Ezequias e, principalmente, Jesus. No livro dos Números 24,17, encontramos o texto que fala do profeta pagão chamado Balaão. Contratado por Balac para amaldiçoar os israelitas, o profeta não o consegue fazer e, pelo contrário, vê-se “obrigado” a abençoá-lo e a profetizar o futuro de Israel em termos régios. Portanto, o “Messias samaritano”, o Taheb, deveria vir alinhado com a ação mosaica, unindo as tribos de Israel em um único povo, libertando-o da escravidão, revelando-lhe a Lei, firmando uma aliança com Deus, estabelecendo o verdadeiro culto sobre o Monte Garizin, chamado de a “montanha das bênçãos” (cf. Dt 11,29; 27,12). Isso se dá pelo fato de haver divergência entre judeus e samaritanos não só na interpretação da Torá, mas também porque há variações no próprio texto do chamado Pentateuco samaritano em relação ao Pentateuco judeu/cristão. Esse mesmo Messias, o Taheb, deveria ser mais que um profeta, seria também um rei que traria a paz para o povo, ampliando os limites do reino para os outros povos da terra, governando-os com justiça.
“Chegou, então, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto da região que Jacó havia dado a seu filho José. Ali se achava a fonte de Jacó. Fatigado da caminhada, Jesus sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta.” (vv. 5-6)
Junto ao poço: a sede de Jesus
Malzoni (2018, pp. 99-100) nos ajuda na compreensão sobre o tempo, lugar e personagens na composição da cena e do cenário, considerando as informações dadas pelo evangelista: era por volta da “hora sexta”, ou seja, meio-dia (v. 6); Jesus chega a Sicar (v. 5), junto a um poço (cenário principal), com uma cidade samaritana próxima dali. Participam do episódio Jesus e seus discípulos, a samaritana e os samaritanos; são citados João Batista (v. 1), Jacó (v. 6 e 12) e José (v. 5). Jesus chega sozinho ao poço, tendo em vista que os discípulos tinham ido comprar alimento. O episódio pode ser dividido em duas cenas: (1) Jesus e a samaritana e (2) Jesus e os discípulos.
O poço (fonte ou manancial) de Jacó não é mencionado no AT, essa informação é um dado fornecido pelo quarto Evangelho e, segundo dados arqueológicos, ele esteve em uso de 1.000 a.C. até 500 d.C. Porém, no AT encontramos episódios importantes que se dão junto a um poço, muitos deles como prelúdios matrimoniais, ou seja, o tema dos “maridos” já começa a ser delineado com a menção do poço. O servo de Abraão encontrou Rebeca, futura esposa de Isaac, junto a um poço próximo à cidade de Aram Naaraim (cf. Gn 24,10-27); Jacó encontrou Raquel, sua futura esposa, junto a um poço quando estava a caminho da casa de Labão (cf. Gn 29,1-14); e Moisés encontrou sua esposa, Séfora, em um poço na Terra de Madiã (cf. Ex 2,15-22). O livro dos Provérbios 5,15-20 afirma que “a esposa é um poço/cisterna e uma fonte”, elogiando a fidelidade conjugal, enquanto adverte contra o adultério.
Em Ex 17,7, Moisés feriu uma rocha e dela fez brotar um manancial que abasteceu o povo com água, no deserto. Essa água da rocha também significou para os israelitas a sabedoria dos mandamentos gravados nas tábuas de pedra, concedidos por Deus a Moisés no Monte Sinai. Na Cruz, Jesus (“pedra angular”) foi ferido pela lança do soldado romano, o que fez jorrar sangue e água, como um novo manancial de vida e sabedoria para o povo da Nova Aliança (cf. Jo 19,34; Is 28,16; Dn 2:34; 44-45; Lc 20,17ss; e 1Pd 2,6-8). Vale ressaltar que “os essênios descreviam a Torá como um poço cavado por seus mestres de onde retiravam o seu conhecimento da verdade. O Poço chega a significar todas as instituições judaicas, a Lei, o templo, a sinagoga e o seu centro, Jerusalém.” (BARRETO & MATEOS, 1999, p. 220)
Barreto & Mateos (1989) afirmam que “a teologia joanina parte da realidade humana de Jesus que se tornou patente na sua morte”. A humanidade de Jesus é vista claramente em sua passagem pela Samaria, pois Ele está cansado da viagem e tem sede. Como um judeu da Galileia, Ele é um estrangeiro que se faz pedinte. Os “limites humanos” de Jesus são o ponto de partida para o diálogo com a mulher.
Lemos que Jesus chegou primeiro ao poço. Certamente já estava à espera da samaritana. Deus sempre toma a iniciativa de vir ao nosso encontro. Ele sempre nos espera. Em seguida, João aponta que Jesus sentou-se. Na Bíblia, a semântica do “sentar-se” indica uma evocação à majestade de Deus (cf. Dn 7,9), uma referência à volta escatológica do Filho do Homem (cf. Mt 25,31) e, principalmente, à relação mestre/discípulo, indicando ensinamento. Aqui, Jesus senta-se como um mestre à espera da discípula samaritana. Ao sentar-se, Jesus já está ensinando, pois evoca outros personagens das narrativas evangélicas: os dois cegos sentados à beira do caminho, na saída de Jericó (cf. Mt 20,30). Marcos ainda especifica o nome e o que fazia: um deles era o cego Bartimeu, que mendigava (cf. Mc 10,46). Em sua primeira lição à samaritana, Jesus ensina humildade e solidariedade com os que sofrem. Jesus se fez mendicante. Na tentação no deserto, Jesus nos ensinou que nossa fome não é só de pão (cf. Mt 4,4; Lc 4,4); e neste encontro com a samaritana, Jesus nos ensina que a nossa sede não é só de água, pois todos temos uma sede mais profunda: uma sede de Deus.
Em João, temos um paralelo entre Jo 4,6.25-26 e Jo 19,13-14. Nas duas passagens, no poço de Jacó e no tribunal de Pilatos, Jesus está sentado e o sol marca o meio-dia, ou seja, a hora sexta. Para a samaritana, Jesus se apresenta como o Messias, enquanto que, no tribunal, é Pilatos quem apresenta Jesus como o Rei dos Judeus.
“Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: ‘Dá-me de beber!’ Seus discípulos haviam ido à cidade comprar alimento. Diz-lhe, então, a samaritana: ‘Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?’ (Os judeus, com efeito, não se dão com os samaritanos.) Jesus lhe respondeu: ‘Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias e ele te daria água viva!’ Ela lhe disse: ‘Senhor, nem sequer tens vasilha e o poço é profundo; de onde, pois, tiras essa água viva? És porventura maior que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, assim como seus filhos e seus animais?’ Jesus lhe respondeu: ‘Aquele que bebe desta água terá sede novamente; mas quem beber da água que lhe darei, nunca mais terá sede. Pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele fonte de água jorrando para a vida eterna’. Disse-lhe a mulher: ‘Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir mais aqui para tirá-la!’ (vv. 7-15)
Em João, cada palavra conta, tudo o que é dito sempre revela algo mais. O v. 8 informa que os discípulos foram comprar alimento, ou seja, o evangelista indica uma relação comercial. No v. 10 Jesus fala do dom de Deus, ou seja, de uma relação de gratuidade. As religiões judaica e samaritana haviam se tornado uma espécie de organização comercial que mediava as relações do povo com Deus, mas Jesus veio restabelecer a essência da gratuidade da eleição divina, do amor desinteressado do Pai.
Ao ver a mulher tirar água do poço, Jesus inicia o diálogo com três palavras: dós moi peîn (“dá-me de beber”). Ao ouvir o que Jesus pedia, a samaritana logo percebe que tinha um judeu diante de si, talvez pela forma de falar ou pelas roupas. Não se sabe se ela deu ou não a água, o texto não deixa isso claro. Sua resposta foi de admiração e ao mesmo tempo de despeito. Todo o histórico de conflitos entre seus povos de repente veio à tona. Jesus deixou passar a suposta aspereza da mulher, pois era justamente essa inimizade que Ele pretendia desfazer. Como homem, Jesus realmente tinha sede de água, precisava se restabelecer do cansaço e do sol implacável do meio-dia e, por outro lado, como enviado do Pai, Jesus tinha sede da fé daquela mulher. Por isso, contornou uma aparente indelicadeza de sua interlocutora e falou-lhe do “dom de Deus” e, provocando-lhe a curiosidade, a iniciou pedagogicamente em um caminho interior no qual foi aos poucos revelando-lhe a sua identidade messiânica. O tema da sede de Jesus também está presente em sua crucificação. Da mesma forma que na Samaria, Jesus diz ter sede para em seguida dar de sua água (cf. Jo 19,28.33). João apresenta Jesus como sujeito do verbo “beber” apenas duas vezes em seu Evangelho: em Jo 4,7 (“Dá-me de beber”) e 18,11 (“Deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?”).
Ao afirmar que Jesus não possui vasilha (v. 11), supomos que a mulher ainda segura seu cântaro, como um símbolo do preconceito. Curiosa, ela tenta rebaixar Jesus perguntando se Ele se considerava maior que o pai Jacó (v. 12), pois, para os samaritanos, Jacó é o patriarca fundamental. Na verdade, Jesus mostrará a ela, assim como fez com Natanael, que é maior que Jacó, e, além disso, João indica que Ele formará um novo povo, acima da pertença étnica, superando o povo formado por Israel. Jacó sonhou com uma escada pela qual os anjos de Deus subiam e desciam. No episódio com Natanael, Jesus diz que ele mesmo é a escada pela qual os anjos de Deus sobem e descem (cf. Jo 1,51). Mais uma vez, Jesus ignora a investida da samaritana e continua a falar-lhe, referindo-se ao poço, que aquela água supre a sede momentaneamente, que ela até poderia não conceder-Lhe um pouco da água que tirara, mas que a água que Ele tem a lhe oferecer sacia por completo, tanto que se torna uma fonte jorrando para a vida eterna (v. 14). Hahn & Mitch (2015, p. 41) apontam que vários textos proféticos retratam as bênçãos do Senhor como a “água” que dá vida: Is 12,3; 44,3; Ez 47,1-12; Zc 14,8. A tradição cristã associa a “água viva” à água do batismo, que nos dá a “vida eterna” (4,14). Paulo descreve o batismo como “beber do Espírito” (1Cor 12,13; CIC 694).
Jesus desperta na mulher o desejo daquela água misteriosa, no que supomos aqui uma mudança no tom e na postura da samaritana. O diálogo possui um movimento interno, cuja ênfase vai da sede de Jesus para a sede da mulher. Em um jogo de palavras, a expressão “água viva” era comumente entendida como “água corrente”. A princípio, a samaritana não entendeu que Jesus se referia ao Espírito Santo. Ela então mostra ter necessidade dessa realidade que desconhecia, admitindo uma sede mais profunda que a biológica. Ratzinger (2007, p. 211) explica que João distingue bios (vida biológica, temporal) e zoé (a vida que vem de Deus, a vida eterna). Assim, no diálogo com a samaritana, a água torna-se símbolo do Espírito Santo, o qual propriamente cria a vida, sacia a sede mais profunda do homem e lhe oferece a vida toda, que ele espera mesmo sem conhecer.
“Jesus disse: ‘Vai, chama teu marido e volta aqui’. A mulher lhe respondeu: ‘Não tenho marido’. Jesus lhe disse: ‘Falaste bem: ‘não tenho marido’, pois tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido; nisso falaste a verdade’.” (vv. 16-17)
Nessa altura, para nós, Jesus aparentemente muda de assunto, mas, como vimos anteriormente, o tema matrimonial está presente no episódio desde o início, com a menção do poço. Ao pedir que a samaritana vá chamar o marido (v. 16), Jesus introduz na conversa a história de vida da mulher e, de forma simbólica e transcendente, evoca a história do reino do Norte, chamado pelo profeta Oséias de esposa adúltera e prostituta (cf. Os 1,2; 3,1). A sede da samaritana poderia ser expressa em sua busca afetiva, pois no fato de ter tido vários maridos é possível inferir que ela buscava em seus relacionamentos saciar uma sede mais profunda, que nenhum homem poderia preencher. Como símbolo da Lei, o poço não a havia saciado e nem ao seu povo. A água viva é a realidade capaz de saciar existencialmente a mulher e a todos que dela beberem, pois trata-se da palavra de Jesus, que comunica o Espírito Santo, o dom de Deus.
Se compreendermos a samaritana como símbolo de seu povo, podemos afirmar que Jesus encontra-se com ela para reclamar sua noiva, ou seja, o povo de Israel. Os seus cinco maridos representam a idolatria instalada em Israel pelos cinco povos trazidos pela Assíria na recolonização da Samaria. Para entendermos esse episódio doloroso da história de Israel, precisamos ler 2Rs 17,24-41, onde o v. 24 cita os povos trazidos e os vv. 30-32 informam os nomes dos ídolos: Babilônia cultuava Sucot-Benot; Cuta tinha por ídolo Nergel; Ava cultuava Asima; o povo de Emat, Nebaaz e Tartac; e por fim, o povo de Serfavaim cultuava os ídolos Adramelec e Anamelec. Das sete divindades, cinco são masculinas, todas chamadas de Baal, que significa “senhor” ou “marido”. Para cada ídolo havia um templo nos chamados “lugares altos”, inclusive com serviço sacerdotal.
O culto ao Deus de Israel não foi totalmente suprimido no Norte, mas teve de conviver com cultos pagãos, sendo profundamente influenciado por eles. Por isso, entendemos que o atual companheiro da samaritana, que não é seu marido (v. 18), representava alegoricamente o então atual culto samaritano ao Deus de Israel, de forma que havia sinceridade na intenção, mas o sincretismo o havia deturpado. Se somados, temos seis companheiros da samaritana, número que na Bíblia representa o inacabado e incompleto. Jesus é o “sétimo marido”, número que, por sua vez, representa perfeição e completude. Ele é o verdadeiro Senhor do povo samaritano, cujo culto será purificado e elevado à perfeição.
“Disse-lhe a mulher: ‘Senhor, vejo que és profeta... Nossos pais adoraram nesta montanha, mas vós dizeis: é em Jerusalém que está o lugar onde é preciso adorar’. Jesus lhe disse: ‘Acredita-me, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade’. (vv. 19-24)
As palavras da samaritana de que não tinha marido (v. 17) revelam a sua sinceridade e dão a oportunidade de Jesus mostrar que conhece a história pessoal dela, fato que O coloca na condição de profeta e revelador, por mostrar-lhe seu estado de adultério e prostituição, como outrora fizera Oséias em relação ao reino do Norte. A mulher admite que está diante de uma autoridade, chama Jesus de profeta (v. 19) e submete a Ele a questão premente da legitimidade do lugar do verdadeiro culto, se em Jerusalém ou Garizin (“esta montanha” - v. 20) - discussão fundamental que estava na base do profundo sulco de separação entre judeus e samaritanos.
Jesus sabia o que a samaritana esperava ouvir. Obviamente que para ela o Garizin deveria ser confirmado pelo Taheb, mas Jesus corrige não só a expectativa samaritana, mas também a expectativa judaica, uma vez que Ele já havia profetizado a destruição do templo de Jerusalém (cf. Jo 2,13-22). Sua resposta não privilegiou nenhum dos dois montes, pois o verdadeiro culto da era messiânica não estará vinculado a um território específico, mas poderá ser prestado de qualquer lugar, desde que seja em espírito e verdade (v. 23), como expressão da realidade trinitária, ou seja, direcionado ao Pai, movido pelo Espírito e, em Verdade, no novo templo, que é Jesus Ressuscitado. Novamente citando o lado aberto de Cristo, mas agora tendo o novo templo em perspectiva, temos que a água que brota de Jesus é também evocação da profecia de Ez 47, sobre a imagem da fonte do templo, cuja água dá vida por onde passa. Os sacrifícios figurativos da Antiga Aliança serão substituídos pelo sacrifício de Jesus na Cruz, enquanto a adoração deverá ser interior. Com isso não se afirma a anulação ou proibição da dimensão exterior do culto, incluindo templos e ritos, mas que tudo o que é exterior deve servir como meio e expressão da adoração em espírito, e não como um fim em si mesmo.
Em seguida, Jesus faz duas afirmações peremptórias: (1) o culto prestado pelos samaritanos é idolátrico, eles adoram o que ignoram, ou seja, o que não conhecem; e (2) que, enquanto se aguardava a vinda do Messias, os judeus, apesar de suas infidelidades, haviam acertadamente crido nas demais Escrituras, a partir das quais se sabia que a salvação deveria vir dos judeus (v. 22). Como vimos, a fé samaritana no Deus de Isarel havia se misturado com cultos pagãos de idolatria. O AT define o culto idolátrico como ignorante (cf. Os 8,2; Sb 13,1-2.10-19; Is 44,9-20). Ambos os povos deveriam abrir-se à revelação de Deus em Jesus Cristo para serem admitidos na Nova Aliança. A reforma cultual possui outra característica, o vínculo familiar: a adoração deve ser prestada por filhos, pois Deus é Pai, ou seja, a nova adoração é marcada pela relação Filho-Pai, deixando para trás o formalismo do Templo e assumindo as relações familiares. Jesus é o novo templo, pois a glória habita no Filho e é Nele que o Pai deve ser adorado. Essas palavras de Jesus marcam o momento decisivo em que a fé da mulher é provada.
“A mulher lhe disse: ‘Sei que vem um Messias (que se chama Cristo). Quando ele vier, nos explicará tudo’. Disse-lhe Jesus: ‘Sou eu, que falo contigo’.” (vv. 25-26)
Diante de tais afirmações a samaritana redarguiu, talvez com orgulho ferido, mas certamente para lembrar ao profeta judeu que, mormente à fé de seu povo e, embora não cressem em todo o AT, eles também esperavam pelo Messias. Jesus, ao sentir trescalar a aquiescência da mulher, faz uma afirmação rara nos Evangelhos, na qual se declara abertamente: “[O Messias] Sou Eu, que falo contigo!”. Ao dizer “Eu Sou/Sou Eu”, Jesus evoca a revelação do nome de Deus a Moisés em Ex 3,13-15, afirmando não só o seu messianismo, mas também a sua divindade.
Em João, a fórmula “Eu Sou” é empregada para afirmar a divindade de Jesus. O mesmo Deus que libertou Israel do Egito, agora veio para libertar o novo Israel do pecado. Jesus não só satisfaz a expectativa samaritana de um novo Moisés, como também cumpre a profecia de Natã sobre o descendente davídico, cujo reino seria eterno (cf. 2Sm 7,11-16). Jesus corresponde e ao mesmo tempo complementa a fé samaritana. Pensamos que, como novo Davi, que reinou sobre todo Israel (cf. 2Sm 5,5), Jesus reconquista a Samaria, ou seja, o povo samaritano, como símbolo da reconquista do reino do Norte, para reinar sobre todo o povo da Antiga Aliança, de forma que os samaritanos também simbolizam o povo gentio, ao qual o reino messiânico da Nova Aliança se expandirá. Citando Ambrósio, Faus (2019, p. 123) explica que “a nossa alma é como uma terra ocupada pelo inimigo, que aos poucos deve ser reconquistada e transformada em Reino de Deus: o Reino da verdade, do amor e da paz.” A unificação do reino de Davi, portanto, se dá pela fé que se deve ter em Jesus Cristo, no qual todas as profecias se cumprem e para o qual toda a Escritura converge.
“Naquele instante, chagaram seus discípulos e admiravam-se de que falasse com uma mulher; nenhum deles, porém, lhe perguntou: ‘Que procuras?’ ou: ‘Que falas com ela?’ A mulher, então, deixou seu cântaro e correu à cidade, dizendo a todos: ‘Vinde ver um homem que me disse tudo o que fiz. Não seria ele o Cristo?’ Eles saíram da cidade e foram ao seu encontro.” (vv. 27-30)
Ao iniciar o diálogo com a mulher, Jesus “transcende os limites da tradição judaica, que aconselha os homens a não conversar com mulheres em público, não beber com um samaritano, nem se relacionar com um pecador conhecido” (HAHN & MITCH, 2017, p. 41). Desde o início Jesus, inerme, mostrou-se acima de qualquer hostilidade ou preconceito, mas, para a mulher samaritana, esse é o momento precípuo, o meio-dia da sua vida, pois, assim como a hora sexta divide o dia ao meio e o sol o ilumina com força máxima, também sua história e do seu povo pode ser dividida em antes e depois desse encontro, de albor divino. Então ela solta o cântaro que segurou durante todo o diálogo: o seu preconceito cai por terra (v. 28). Da mesma forma que os apóstolos deixaram suas redes de pesca e imediatamente seguiram Jesus (cf. Mt 4,20), assim a samaritana largou o seu cântaro e partiu em sua primeira missão. A palavra “cântaro”, esclarecem Barreto & Mateos (1999), é a mesma usada nas bodas de Caná para descrever as talhas, ambas simbolizando a antiga Lei, de forma que, em Caná, Jesus as enche com o vinho novo da era messiânica e, na Samaria, a mulher simplesmente o larga, pois a água que retira do poço e bebe não é capaz de satisfazê-la. Sem perceber, ela já estava sutilmente sendo saciada pela palavra de Jesus, não necessitando de nenhum sinal ou milagre para crer. Transbordante de água viva, ela já mostra ter-se tornado também uma fonte, e sai correndo para anunciar a novidade aos seus conterrâneos e, por sua palavra-testemunho, voltará com a cidade após si. Ela anunciou Jesus como um homem, não como judeu, e lhes abre a possibilidade de ter encontrado o Cristo (v. 29). A possibilidade se confirmará para os samaritanos ao ouvirem Jesus diretamente (vv.41-42). Os óbices haviam sido esgarçados, sobretudo a discriminação, e a era messiânica começava a despontar.
“Enquanto isso, os discípulos rogavam-lhe: ‘Rabi, come!’ Ele, porém, lhes disse: ‘Tenho um alimento que não conheceis’. Os discípulos se perguntavam uns aos outros: ‘Por acaso alguém lhe teria trazido algo para comer?’ Jesus lhes disse: ‘Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e consumar a sua obra. Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses e chegará a colheita’? Pois bem, eu vos digo: Erguei vossos olhos e vede os campos: estão brancos para a colheita. Já o ceifeiro recebe seu salário e recolhe fruto para a vida eterna, para que o semeador se alegre juntamente com o ceifeiro. Aqui, pois, se verifica o provérbio: ‘Um é o que semeia, outro o que ceifa’. Eu vos enviei a ceifar onde não trabalhastes; outros trabalharam e vós entrastes no trabalho deles’.” (vv. 31-38)
Colheita espiritual: a fome de Jesus
Na segunda cena, Jesus conversa com os seus discípulos enquanto a mulher se dirigia à sua cidade, para anunciar o que ouvira e experimentara. Os discípulos haviam chegado um pouco antes, quando Jesus ainda conversava com a mulher e revelava-lhe que era o Messias (v. 27). Eles observaram a cena, acharam estranho Jesus dialogar sozinho com ela, mas não disseram nada. Os discípulos pediram que Jesus comesse o alimento que haviam comprado. Ao que Jesus fez menção a um alimento desconhecido, fazendo os discípulos pensarem que alguém havia lhe dado de comer. Mais uma vez, Jesus aproveita-se de uma situação corriqueira (fazer uma breve refeição) para elevar os seus interlocutores às realidades sobrenaturais. “Jesus agora não parecia cansado, nem com sede, nem com fome. O motivo de não ter acompanhado os apóstolos à cidade - agora parece evidente - teria sido o faro do encontro, outro apetite” (MOHANA, 1988, p. 42). Ao ver a salvação chegando aos samaritanos, Jesus já se sente saciado, pois seu alimento é fazer a vontade do Pai e consumar a obra para a qual foi enviado (v. 34). Em Jesus, a vontade do Pai é alimento, pois é fonte que comunica vida e, portanto, substitui o alimento que perece, assim como a água viva substitui a água do poço de Jacó. Aqui também há uma evocação de Gn 2,2, indicando que a obra da criação precisa ser completada. Jesus foi enviado pelo Pai para concluir a criação do homem.
Barreto & Mateos (1989) explicam que a cronologia do quarto evangelho é pautada no tema da criação, iniciado no prólogo (1,1). As indicações temporais em 1,19.29.35.43 e 2,1, tem como objetivo fazer coincidir o início da obra de Jesus com o sexto dia, que é o dia da criação do homem. As palavras de Jesus na cruz, em Jo 19,30 (“Está consumado!”), pronunciadas na segunda sequência de seis dias apontada pelo evangelista (12,1.12; 13,1; 19,14.31.43), revelam o paradoxo da obra realizada por Jesus: em seu aparente fracasso, Ele dá remate ao propósito de seu envio. Em João, o homem será completo à medida em que acolher o Espírito Santo, doador da vida definitiva. Na indicação do primeiro dia da semana em Jo 20,1 temos a conclusão do tema do sexto dia. O primeiro dia também é o oitavo dia, simbolizando a escatologia já presente do tempo messiânico. O número oito remete ao mundo definitivo, passada a primeira criação (sete dias).
Jesus prossegue e faz o discurso profético da colheita espiritual da Igreja em relação aos samaritanos (vv. 35-38). Ao pedir que os discípulos levantem os olhos para ver os campos prontos para a colheita, provavelmente já tinha diante de si a mulher samaritana, acompanhada de outros samaritanos, caminhando ao seu encontro. Ao falar em colheita, Jesus faz memória das palavras de Oséias 2,25: “Eu semearei para mim na terra, amarei a Não-amada e direi a Não-povo-meu: ‘Tu és o meu povo’, e ele dirá: ‘Meu Deus’.” Jesus recorda o trabalho daqueles que O precederam e aponta o futuro da Samaria como uma continuidade da ação evangelizadora dos patriarcas e profetas, com uma diferença: o que os antigos ouviram em figuras, os discípulos viram e conheceram pessoalmente.
“Muitos samaritanos daquela cidade creram nele, por causa da palavra da mulher que dava testemunho: ‘Ele me disse tudo o que fiz!’ Por isso, os samaritanos vieram até ele, pedindo-lhe que permanecesse com eles. E ele ficou ali dois dias. Bem mais numerosos foram os que creram por causa da palavra dele; e diziam à mulher: ‘Já não é por causa de teus dizeres que cremos. Nós próprios o ouvimos, e sabemos que esse é verdadeiramente o salvador do mundo’.” (vv. 39-42)
Os samaritanos chegam para ouvir Jesus, que não lhes nega o anúncio do Evangelho. O evangelista diz que muitos creram em Jesus pela palavra da mulher, mas muitos outros creram ao ouvir Jesus pessoalmente (v. 41). Jesus supera suas expectativas, Ele é não só o Taheb, mas, diante de Jesus, a fé dos samaritanos se transforma em saber, eles então o professam Salvador do mundo (v. 42). Oséias 3,5 profetizou: “Depois voltarão os israelitas a buscar o Senhor, o seu Deus, e Davi, o seu rei...” A evolução da compreensão da pessoa de Jesus marca o itinerário do episódio: Judeu > Profeta > Messias > Salvador do Mundo, como resposta às palavras de Jesus: “Se conhecesses quem é que te pede de beber...” (v. 10). Numerosos habitantes da aldeia samaritana mostram-se sedentos da palavra de Jesus, o que os faz pedir a sua permanência na Samaria - a reconciliação já é uma realidade -, ao que Jesus acedeu e ficou ali por dois dias, para cumprir mais uma profecia de Oséias (6,2), que diz: “Depois de dois dias nos fará reviver...”
Desde a divisão do reino, o sincretismo samaritano havia feito com que eles buscassem suas seguranças fora do Deus de Israel, pois os cultos pagãos tinham ligação com a fertilidade do solo, as chuvas e, consequentemente, com a produção de alimentos para sua subsistência. Todos aspectos essenciais para a vida humana e que não são negados pelo Deus de Israel. A prostituição dos samaritanos, por assim dizer, consistia em buscar nos ídolos aquilo que já tinham em Deus, que sustenta Sua criação (cf. At 17,28; 1Col 1,17). Em suas profecias (cf. Jr 2,13), o profeta Jeremias descreve Judá com imagens do que já havia acontecido em Israel: “Eles [meu povo] me abandonaram, a mim, fonte de água viva, para cavar para si cisternas, cisternas furadas, que não podem conter água.” Jesus convida os samaritanos a voltarem ao seu primeiro amor, ao seu verdadeiro marido, com quem haviam sido felizes (cf. Os 2,8-9). Esse itinerário espiritual samaritano tangencia a parábola lucana do filho pródigo, que decide retornar para a casa do Pai, após ter chegado a uma humilhante situação existencial, momento em que recorda da felicidade outrora vivida em família (cf. Lc 15, 11-32); semelhante ao Pai misericordioso do texto de Lucas, Oséias descreve, em termos maternos, a comovente acolhida de Deus ao seu povo: “Como poderei eu abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel?... Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se” (Os 11,8). Os samaritanos haviam rompido com Deus, mas não Deus com eles, pois Ele permanece fiel mesmo em nossas infidelidades (cf. 2Tm 2,11-13).
A narrativa de Jo 4,4-42 nos ajuda a entender a Igreja como o novo Israel. A afirmação de que Jesus é o salvador do mundo, amplia a perspectiva acerca da missão da Igreja. É certo que a salvação veio dos judeus, mas não veio apenas para eles. Os samaritanos testemunham que ela é para todos os povos do terra (cf. Jo 3,17; 1Jo 2,2). Rejeitado na Judéia, fato que também motivou sua viagem de volta à Galiléia, devido a hostilidade dos fariseus (cf. Jo 4,1-3), Jesus foi acolhido na Samaria. Como representantes dos povos pagãos que se tornarão crentes, os samaritanos prestam um papel teológico dentro da narrativa joanina, em que há a contradição de o próprio povo de Jesus rejeitá-lO, enquanto os pagãos acolhem-nO.
Em Jo 19,14s, Pilatos gritou ao povo judeu: “Eis o vosso Rei!”, ao que as autoridades judaicas optaram pelo império romano: “Não temos outro rei senão César!”. Também Pilatos, talvez para insultar os judeus, redigiu e mandou pregar no alto da Cruz de Jesus o letreiro “Jesus Nazareno, o rei dos judeus” (em três línguas: hebraico, latim e grego), fato que desagradou as autoridades judaicas, que pediram a retirada da inscrição, mas Pilatos respondeu: “O que escrevi, [ficará como] escrevi!” (cf. 19,19-22). De forma um tanto irônica, essa passagem mostra que, no final das contas, foram os pagãos, e não os judeus, que sustentaram a realeza de Jesus.
Reflexão
1) O encontro com Jesus mudou a vida da samaritana. A hora sexta dividiu não só aquele dia, mas a vida dessa mulher. Ela passou do tempo cronológico (chronos) para o tempo da graça (kairós). Nas nossas vidas, qualquer hora pode ser a hora sexta, a hora da mudança, o momento da nossa conversão: basta que tenhamos um encontro pessoal com o Taheb, aquele que devia vir… e já veio! Escute a profunda sede do seu ser e deixe-se saciar pela presença amorosa de Deus em sua vida. Ore e clame pelo dom de Deus, o divino Espírito Santo.
2) O salmista compara o seu desejo de Deus com uma corsa sedenta (cf. Sl 42,2-3). O salmo 42 provavelmente foi escrito por um sacerdote ou escriba exilado na Babilônia, longe de sua terra e com a triste memória da destruição do Templo. Sem poder exercer o culto no Templo, sua única saída é manter viva a sua sede. O profeta Isaías, convida à nova Jerusalém nesses termos: “Todos que tem sede, vinde à água...” (55,1). Convite que é reiterado no livro do Apocalipse (22,17): “Que o sedento venha, e quem o deseja receba gratuitamente água da vida”… Nos momentos de crise e incerteza, mantenha viva a sua sede, sabendo que somente o Espírito Santo de Deus pode saciá-lo por completo.
3) De forma imediata, entendemos que Jesus pediu um pouco de água à samaritana, mas seu pedido é bem mais abrangente, apenas pede que ela Lhe dê de beber. Por seus muitos maridos, vemos que a mulher tem sede de um relacionamento que a faça feliz. Jesus vai ao encontro dessa sede. A mulher tem um cântaro com água em sua mão, mas o que Jesus realmente quer está em seu interior. Ele alcança a história de vida da mulher que, por sua vez, não se sente humilhada ao saber-se descoberta em sua intimidade, mas acolhida pelo peregrino judeu, abraçada em suas feridas. Muitas vezes “damos” muitas coisas a Deus e esquecemos de dar aquilo que só nós e Ele conhecemos. Temos a tendência de viver uma constante “interpretação teatral” em nossa vivência religiosa, mas Deus quer a nossa verdade mais íntima. Qual a sua verdade? Qual a dimensão da sua vida que você esconde de todos por não encontrar um interlocutor para o qual abrir seu coração? Ore e entregue tudo a Jesus, pois Ele lhe estende a mão e pede: “- Dá-me de beber... Dá-me do que tens no coração, dá-me tudo o que és!”
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